INTRODUÇÃO

Este trabalho é um estudo que fiz com objetivo de explorar as relações de poder que ocorrem na associação entre cadetes do 1° ano e seus superiores imediatos na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN). Apresento a Academia, como se ingressa nela, os objetivos desta na formação do cadete em aspirante a tenente, a burocracia, típica da Instituição militar, as noções de hierarquia e disciplina, a relação comando-obediência, e a relevância da meritocracia. Eu escolhi este objeto de estudo porque a análise de poder numa instituição militar se confunde com a disciplina, fator inconfundível da característica castrense. Quis, por isso, me ater a questões essenciais para estabelecer uma distinção mais compreensível do poder na esfera da Academia. O que me levou a investigar se deve a uma viagem que realizei neste mesmo ano às Minas Gerais, no trajeto passei por Resende, na Rodovia Presidente Dutra. Nela, em dado momento, pode-se visualizar dois pilares que chamam a atenção de qualquer pessoa, estes que saberia depois que correspondem à hierarquia e disciplina. Obtive auxílio para compreender a estrutura e o cotidiano da AMAN com um grande amigo meu, o cadete Gabriel Lobo que atualmente cursa o 1° ano. Com ele realizo uma entrevista aberta, não estruturada, e adquiro percepções que me permitiram elaborar um questionário com perguntas que expuseram o pensamento de mais 20 cadetes de 1° ano. O ouvir, que Roberto Cardoso de Oliveira aborda tão bem, foi muito importante para eu poder discernir o meu ponto de investigação, já que o mundo militar tem características que só com uma noção sensorial se tornam elucidadas. E mais significativo ainda na hora do escrever, porque é com base no ouvir que estabeleci todo o meu estudo, as falas cheias de “dialetos” consistem numa cultura singular que particulariza os militares. Foi muito interessante ter que “tirar a capa” de membro da sociedade, como fala Roberto da Matta, para estranhar as regras da cultura militar e assim transformar o familiar em exótico.

A ACADEMIA MILITAR DAS AGULHAS NEGRAS

A Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) é uma escola de ensino superior do Exército Brasileiro, situada em Resende, no estado do Rio de Janeiro. É a única escola formadora de oficiais de carreira das Armas de Infantaria, Cavalaria, Artilharia, Engenharia e Comunicações, do Quadro de Material Bélico e do Serviço de Intendência do Exército. Para ingressar na Academia, é necessário prestar um concurso público anual para a Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx), situada na cidade paulista de Campinas. Nessa escola, com o título de Aluno, os jovens militares entre os 17 e os 22 anos realizam um curso de um ano, após o qual ingressam na AMAN sem que lhes seja preciso prestar um novo concurso público. O ano em que foquei a análise das relações de poder e sua influência inicial nos cadetes, o 1º ano da Academia Militar, que é o Curso Básico, ocorre a Formação Básica do futuro oficial. Os objetivos promovidos pela Academia são ajustar a personalidade do cadete aos princípios que regem a vida militar, assegurar os conhecimentos que o habilitem ao prosseguimento de sua formação de oficial, fortalecer o caráter militar, preparar o combatente básico, obtendo reflexos na execução de técnicas e táticas individuais de combate, obter capacitação física e desenvolver habilidades técnicas. Há uma profunda preocupação com a formação de líderes e abarcado nele todos os valores essenciais à Instituição. Vê-se a ideia de promover oficiais com capacidade de liderança, ou seja, com paciência, respeito, disciplina, carisma e, principalmente, a capacidade de influenciar os subordinados.

O PRIMEIRO CONTATO COM A INSTITUIÇÃO

Minha primeira análise ocorreu numa reunião que tive com o cadete Gabriel Lobo, na casa dele, num dia que ele estava de licença da AMAN e ainda teria outro para descansar e estar com sua família. Com a ajuda de um gravador para posterior observação comecei uma entrevista não estruturada, aberta, pois não tinha o campo a estudar – AMAN – esclarecido, no que concerne à sua estrutura e a sua identidade institucional. A conversa durou em torno de uma hora, eu a conduzi de forma apenas a entender o geral e o cotidiano das relações entre os diversos militares, e a partir dela consegui cercear o plano de análise que eu teria na obtenção de dados acerca do tema. Gabriel expôs o começo da sua caminhada no meio militar na EsPCEx até o presente momento em que cursa o 1° ano da Academia. Ele descreve a noção de hierarquia e disciplina vivida lá dentro, assim como a pressão psicológica exercida pelos superiores, o que resultou no princípio do estudo e que, posteriormente, me possibilitou elaborar um questionário – com perguntas abertas e fechadas – que foi divulgado a outros cadetes (vinte me responderam) e resultou numa percepção bem específica das relações de poder na Academia.

A BUROCRACIA COMO GERADOR DA HIERARQUIA E DA DISCIPLINA

Burocracia é, em noção ampla, uma estrutura organizativa, cujas características são ter regras e procedimentos explícitos e regularizados, divisão de responsabilidades, especialização do trabalho, e hierarquia. Como constata Weber (2004a), a burocracia se expressa em uma administração definitiva de colaboração entre indivíduos, na qual cada um efetua uma função especializada. Na AMAN o conceito se evidencia no que diz respeito à questão hierárquica e aos processos extremamente compostos por regras, que caracterizam a disciplina. A hierarquia é a guia das condutas individuais e coletivas no campo militar. Segundo Dumont (1995, p.397, apud ABREU, 1998, p. 237-245), “a hierarquia (ou englobamento) – de um ponto de vista mais formal – é a relação de um todo (ou um conjunto) com um dos elementos que o compõem”. Logo no início da sua formação, por meio de uma série de atividades, são introduzidos nos cadetes valores de obediência, submissão, exatidão, racionalidade, pontualidade e meritocracia. Este processo objetiva alterar formas de pensar, sentir e agir, com a finalidade de que acatem sem questionamento o modelo administrativo – a burocracia – praticado pela instituição, instituído na hierarquia e garantido pela prática disciplinar, colocado no comportamento do militar, desde o momento que ingressa na carreira. Cadete Gabriel Lobo revelou que não tomou impacto do sistema militar porque sempre teve isso em casa (de obedecer, cumprir ordens), porém há muita gente que entra em conflito pessoal porque tem que obedecer sem contestação. Atesto no meu questionário que a maioria dos cadetes já estava habituada a ter disciplina e cumprir ordens antes de ingressarem na Academia, assim como já haviam tido contato com a atmosfera militar, mas também percebi que grande parte não tinha se deparado com uma disciplina rigorosa, árdua e impositiva, típica da AMAN. Como aborda Castro (2004, p.29), “Para os cadetes do 1° ano, a obediência devida muitas vezes deve ser cega e sem limites e a humanidade não é característica necessariamente presente no tratamento a eles dispensado pelos oficiais.”.

AS FIGURAS DISCIPLINARES IMEDIATAS

O oficial que está a todo o momento em contato é o tenente, o superior imediato. No que eu pude averiguar a figura do tenente é mais distante na AMAN do que na EsPCEx, porém com o tempo os cadetes se aproximaram naturalmente e passaram a ter uma relação mais amistosa, mas ainda com toda a característica disciplinar. Os cadetes dos demais anos – 2° ao 4° – que na gradação são superiores tornaram-se amigos dos do 1° ano e houve pressão psicológica apenas na recepção à Academia, no período de adaptação, “para fazer quem tem que ir embora ir de uma vez” como fala Gabriel. O capitão, figura que dialoga com os cadetes todos os dias, dadas as formalidades cotidianas, não representa tanto uma relação de estima para os cadetes, averiguado na minha pergunta: “você estima o capitão, na AMAN?”, esta que obteve de grande parte que ele é uma figura desagradável. A causa desta não afeição é porque ele pune muito. A punição consiste em impedir o cadete de tirar uma licença da Academia no final de semana, esse impedimento é causado, formalmente, por algum erro disciplinar, mas percebi pelos relatos que há certo exercício demasiado de autoridade, este que se confunde com a personalidade do indivíduo. A princípio o capitão pune muito, e sem fundamento, já que a maior parte das punições é dada a detalhes que várias vezes são passados por despercebido e ou que, de noção geral dos cadetes, não é uma causa que infringe, seriamente, uma norma disciplinar. Visualiza-se que os princípios da hierarquia dos postos e dos níveis de autoridades significam um sistema firmemente ordenado de mando e subordinação, no qual o cadete, neste caso, é punido, mas se entende que um dia o cargo tende a ser ocupado por ele, assim como o capitão já foi cadete, o que pode ser a causa resultante do grande número de punições feito pelo capitão. A “Hierarquia militar não é um sistema piramidal, mas uma “fila indiana” onde os indivíduos de uma patente podem ocupar diferentes posições na escala de subordinação.” (LEIRNER, 1997, p.47). O capitão mesmo superior ao cadete, ainda é inferior ao major, ao comandante. Ele também é subordinado.

MERITOCRACIA COMO ESSÊNCIA DA HIERARQUIA

Segundo a meritocracia, as posições hierárquicas devem ser conquistadas com base no merecimento, aqui, o mérito próprio do cadete de conseguir se tornar aspirante a tenente, e seguir adiante na sua “escalada” ao fim da hierarquia. O cerne da estrutura militar se baseia na meritocracia. Ainda no meu questionário indaguei que: “assim como o seu superior está acima de você, este posto um dia poderá ser seu, a meritocracia aqui é válida?”. Obtive de todos os cadetes a resposta de que é válida. Todos acreditam fielmente que por qualidade individual e por esforço se tornarão um oficial superior. Também abordo: “você respeita o seu superior por ele ter chegado ali meritocraticamente ou devido à obediência?”. Assim como a pergunta anterior os cadetes me informam que respeitam o superior devido à capacidade dele de ter chegado àquele posto. Por fim pergunto se: “ser militar é ser subordinado?”. Tenho em vista a única pergunta, que gera polarização de opiniões. Realmente metade discorda e a outra concorda, esta que se sintetiza por uma frase dita pelo cadete Gabriel Lobo: “é saber obedecer para comandar”. Entendi que os que discordam não apreciam serem declarados como subordinados. Mas atesta Weber (2004b), as relações de poder parecem ser entendidas como uma relação de comando e obediência, ou seja, como dominação em seu sentido pela construção de um vínculo moral entre superiores e subordinados relativos, para o qual são criadas responsabilidades e obrigações baseadas em normas. Foucault discorre que as relações de poder postas nos quartéis – enquadra-se a Academia – são marcadas pela disciplina: “mas a disciplina traz consigo uma maneira específica de punir, que é apenas um modelo reduzido do tribunal” (FOUCAULT, 1999, p.203). É pela disciplina que as relações de poder se tornam mais naturalmente perceptíveis, porque é através da disciplina que se estabelece a relação – persuasivo e persuadido, mandante e mandatário – dos cadetes com os demais oficiais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo acerca das relações de poder na AMAN no que tange os cadetes do 1° ano como foco em relação aos superiores revelou que a hierarquia militar ajuda a compreender por que, embora os oficiais sejam vistos pelos cadetes como aqueles que têm poder, que os pressionam e punem – no caso do capitão – por outro lado são modelos daquilo que os cadetes pretendem vir a ser. Na academia militar só fica quem quer alcançar, realmente, o posto de oficial. Não há coerção nas relações, o cadete não é obrigado a nada, por isso as ações que cumpre são apenas atos destinados a ele, um subordinado, que na escala hierárquica é o imediato a cumprir. Vale dizer que não foi percebido abuso de poder, então a legitimidade do exercício de autoridade do oficial superior se mostra na capacidade dele de exercer o posto pela qualificação, no tempo de serviço, e por seu esforço de ter chegado ali, todas, características da meritocracia.