Uma Década e Meia de Clima em Recife: Análise de Tendências e Padrões (2010-2025)

1. Introdução

As mudanças climáticas globais, impulsionadas por ações antropogênicas, manifestam-se localmente através de alterações em padrões de temperatura, precipitação e na frequência e intensidade de eventos climáticos extremos. Para cidades costeiras densamente povoadas em países em desenvolvimento, os riscos são particularmente agudos. Recife, a capital de Pernambuco, emerge neste cenário como um dos casos mais emblemáticos e vulneráveis do Brasil. Sua geografia de planície costeira, cortada por rios e estuários, combinada com uma urbanização histórica que ocupou áreas de mangue e várzeas, cria uma predisposição intrínseca a múltiplos riscos climáticos. A cidade enfrenta uma “ameaça tripla”: a elevação do nível do mar que avança sobre sua orla, a intensificação de eventos de precipitação que causam inundações e deslizamentos, e o aumento das temperaturas, exacerbado pelo efeito de ilha de calor urbana.

Diante deste cenário crítico, este projeto busca responder a uma questão fundamental: para além da percepção geral, quais são as evidências quantitativas, as tendências estatísticas e os padrões observáveis no comportamento do clima de Recife no período recente (2010-2024)? O objetivo é transcender uma análise superficial, construindo uma narrativa detalhada e cientificamente embasada que utilize dados diários para contar a história climática da cidade. Investigar a dinâmica de temperaturas mínimas e máximas, a frequência de eventos extremos de chuva e as inter-relações entre as variáveis climáticas é um passo indispensável para subsidiar políticas de adaptação eficazes e fortalecer a resiliência urbana.

A vulnerabilidade de Recife e do Nordeste do Brasil (NEB) é um tema extensivamente documentado na literatura científica recente. O sexto relatório do IPCC (2021) projeta, com alto grau de confiança, a continuação do aquecimento e o aumento na frequência de extremos de calor para o NEB. Estudos locais confirmam essa tendência. Azevedo, Maia e Souza (2020), por exemplo, analisaram o fenômeno da Ilha de Calor Urbana (ICU) em Recife, demonstrando como as áreas densamente construídas chegam a registrar temperaturas significativamente mais altas que o entorno, amplificando o estresse térmico sobre a população. Esta descoberta é crucial, pois o aquecimento observado nos dados não é apenas um fenômeno de macroescala, mas é intensificado pela própria estrutura da cidade.

O regime de chuvas do NEB é notoriamente complexo e variável, influenciado por fenômenos como o ENOS (El Niño-Oscilação Sul). Enquanto a região é historicamente conhecida por secas severas, há uma crescente preocupação com a intensificação dos eventos de precipitação. Da Silva e de Souza (2018) identificaram tendências de aumento na frequência e intensidade de chuvas extremas em várias partes do Nordeste, um fator diretamente ligado aos desastres por inundação que têm afetado Recife nos últimos anos. Ferreira et al. (2021) mapearam a vulnerabilidade socioambiental a inundações em Recife, concluindo que as populações de menor renda, que habitam áreas de risco geomorfológico, são as mais expostas a esses eventos.

Sendo uma cidade com vasta área abaixo dos cinco metros de altitude, Recife é extremamente sensível à elevação do nível do mar. Neves e Muehe (2015) já classificavam a costa pernambucana como de alta vulnerabilidade. Estudos mais recentes, como o de Arraes e de Andrade (2022), focaram nos impactos diretos na infraestrutura urbana do bairro de Boa Viagem, em Recife, detalhando os riscos para edificações, sistemas de drenagem e para a própria faixa de areia, que funciona como primeira linha de defesa. Ademais, as mudanças no clima têm consequências diretas para a saúde pública, como destaca Hacon et al. (2016), que relacionam o aumento de ondas de calor ao agravamento de doenças cardiovasculares e respiratórias, e o aumento das chuvas à proliferação de doenças transmitidas por vetores.

Para construir esta narrativa climática, é empregado um conjunto de dados do projeto NASA POWER. Esta fonte de dados de reanálise, que integra observações de satélite em modelos, é particularmente útil para regiões onde a rede de estações meteorológicas em solo pode ser esparsa ou possuir séries com falhas. Estudos de validação, como o de Guedes et al. (2020) para o Nordeste do Brasil, atestam a confiabilidade dos dados do NASA POWER para variáveis como a radiação solar, conferindo robustez à sua utilização para análises climatológicas. A metodologia central será a Análise Exploratória de Dados (AED), uma filosofia de análise de dados proposta por Tukey (1977) que prioriza a visualização e a sumarização para descobrir padrões e gerar hipóteses. Esta análise detalhada visa fornecer subsídios valiosos para gestores públicos, para o setor de saúde, para pesquisadores e para a sociedade civil, fornecendo dados concretos para o planejamento e a conscientização sobre as mudanças climáticas locais.

2. Pacotes e Preparação do Ambiente

Antes de iniciar a análise, prepara-se o ambiente R, garantindo que todos os pacotes necessários estejam disponíveis e carregados.

# Carregando os pacotes necessários para a análise
library(readr)    # Para ler dados retangulares (CSVs) de forma eficiente
library(dplyr)    # Para uma gramática de manipulação de dados coesa
library(ggplot2)  # Para a criação de gráficos declarativos e elegantes
library(lubridate)# Para facilitar a manipulação de variáveis de data e hora
library(janitor)  # Para limpar e padronizar nomes de colunas
library(knitr)    # Para a criação de tabelas formatadas profissionalmente
library(zoo)      # Para funções de séries temporais como médias móveis
library(rmdformats) # Para o template estético deste relatório
library(corrplot) # Para a visualização de matrizes de correlação
library(tidyr)    # Para a organização de dados (tidy data), especialmente para pivotagem

3. Metodologia de Coleta e Preparação dos Dados

3.1 Fonte e Descrição dos Dados

Conforme mencionado, os dados foram obtidos do banco de dados NASA POWER (Prediction of Worldwide Energy Resource), acessível publicamente através de seu portal de visualização e download. Os dados do POWER são derivados do sistema de assimilação GEOS (Goddard Earth Observing System) e fornecem uma cobertura global com resolução espacial de 0.5° x 0.5° (aproximadamente 55x55 km na linha do equador). Embora essa resolução seja relativamente grossa e não capture microclimas, ela é excelente para analisar tendências e padrões climatológicos de uma região metropolitana como um todo.

  • Fonte: NASA POWER Data Access Viewer
  • Parâmetros da Requisição:
    • Tipo de dado: Série Temporal Diária
    • Coordenadas: Latitude -8.05, Longitude -34.9 (ponto central de Recife)
    • Período: 01/01/2010 a 14/06/2025
    • Parâmetros Selecionados: Temperatura do ar a 2m (Média, Máxima, Mínima), Precipitação Corrigida, Umidade Relativa a 2m, Radiação Solar de Ondas Curtas na Superfície, Velocidade do Vento a 2m.
    • Formato: CSV

3.2 Processo de Importação, Limpeza e Transformação

A transformação de dados brutos em um formato analítico (tidy data) é um passo crítico. Nosso processo foi o seguinte:

  1. Leitura dos Dados: Importou-se o arquivo .csv. A função read_csv foi utilizada, especificando que o valor -999 representa dados ausentes (NA). Foi crucial garantir que o cabeçalho com os nomes das colunas fosse lido corretamente.
  2. Padronização dos Nomes: Utilizou-se a função clean_names() do pacote janitor para converter os nomes das colunas para um formato padronizado (minúsculas, sem espaços ou caracteres especiais), o que previne erros e facilita a programação.
  3. Criação de Variáveis de Data: A partir das colunas year, mm e dd, criou-se uma única coluna data no formato Date. Esta é a variável fundamental que permite tratar os dados como uma série temporal.
  4. Seleção e Renomeação: Selecionou-se apenas as colunas de interesse para a análise e estas foram renomeadas para nomes em português, tornando o código e os gráficos mais intuitivos.
  5. Engenharia de Atributos (Feature Engineering): Novas variáveis foram criadas a partir das existentes para enriquecer a análise. A mais importante foi a amplitude_termica_c, calculada como a diferença entre a temperatura máxima e mínima. Também foram extraímos componentes temporais como ano, mes e dia_semana.
  6. Tratamento de Dados Ausentes: Finalizou-se o processo removendo quaisquer linhas que contivessem valores NA após a importação. Dada a qualidade do dataset, a quantidade de dados ausentes foi mínima.
# Caminho para o arquivo de dados
file_path <- "dados_climaticos_nasapower_recife_diarios.csv"

# Leitura do arquivo CSV, definindo o marcador de NA e lendo o cabeçalho.
dados_brutos <- read_csv(file_path, na = "-999")

# Processo completo de limpeza e transformação dos dados
dados_limpos <- dados_brutos %>%
  clean_names() %>%
  mutate(
    date = make_date(year, mm, dd),
    .before = 1
  ) %>%
  select(
    data = date,
    temp_media_c = t2m,
    temp_max_c = t2m_max,
    temp_min_c = t2m_min,
    precipitacao_mm = prectotcorr,
    umidade_relativa_perc = rh2m,
    radiacao_solar_kwh_m2 = allsky_sfc_sw_dwn,
    vel_vento_ms = ws2m
  ) %>%
  mutate(
    amplitude_termica_c = temp_max_c - temp_min_c,
    ano = year(data),
    mes_num = month(data),
    mes = month(data, label = TRUE, abbr = FALSE),
    dia_semana = wday(data, label = TRUE, abbr = FALSE)
  ) %>%
  na.omit() 

# Apresentação condensada da estrutura final dos dados
glimpse(dados_limpos)
## Rows: 5,473
## Columns: 13
## $ data                  <date> 2010-06-18, 2010-06-19, 2010-06-20, 2010-06-21,…
## $ temp_media_c          <dbl> 26.18, 25.61, 25.17, 25.39, 24.99, 24.91, 24.46,…
## $ temp_max_c            <dbl> 27.93, 28.07, 27.77, 28.24, 27.23, 27.42, 27.50,…
## $ temp_min_c            <dbl> 24.83, 23.70, 23.33, 23.63, 23.24, 22.78, 22.23,…
## $ precipitacao_mm       <dbl> 59.33, 10.41, 0.76, 1.35, 10.74, 9.06, 0.61, 2.4…
## $ umidade_relativa_perc <dbl> 88.30, 84.07, 81.22, 81.97, 86.79, 82.68, 76.34,…
## $ radiacao_solar_kwh_m2 <dbl> 15.74, 19.85, 19.67, 19.17, 17.01, 18.50, 19.94,…
## $ vel_vento_ms          <dbl> 4.44, 3.70, 3.36, 2.63, 2.37, 3.75, 3.87, 4.45, …
## $ amplitude_termica_c   <dbl> 3.10, 4.37, 4.44, 4.61, 3.99, 4.64, 5.27, 4.56, …
## $ ano                   <dbl> 2010, 2010, 2010, 2010, 2010, 2010, 2010, 2010, …
## $ mes_num               <dbl> 6, 6, 6, 6, 6, 6, 6, 6, 6, 6, 6, 6, 6, 7, 7, 7, …
## $ mes                   <ord> June, June, June, June, June, June, June, June, …
## $ dia_semana            <ord> Friday, Saturday, Sunday, Monday, Tuesday, Wedne…

3.3 Estrutura e Resumo do Conjunto de Dados Final

O conjunto de dados final é um data frame com 5473 observações (dias) e 13 variáveis, pronto para a análise. Um resumo estatístico inicial nos dá uma visão panorâmica das escalas e distribuições de cada variável.

# Resumo estatístico das variáveis numéricas
dados_limpos %>%
  select(where(is.numeric), -ano, -mes_num) %>%
  summary() %>%
  kable(caption = "Resumo Estatístico das Variáveis Climáticas (2010-2024)")
Resumo Estatístico das Variáveis Climáticas (2010-2024)
temp_media_c temp_max_c temp_min_c precipitacao_mm umidade_relativa_perc radiacao_solar_kwh_m2 vel_vento_ms amplitude_termica_c
Min. :22.95 Min. :25.32 Min. :20.71 Min. : 0.000 Min. :57.48 Min. : 1.91 Min. :1.190 Min. :1.240
1st Qu.:25.13 1st Qu.:27.98 1st Qu.:23.13 1st Qu.: 0.430 1st Qu.:71.96 1st Qu.:19.47 1st Qu.:3.380 1st Qu.:4.640
Median :26.49 Median :29.81 Median :24.16 Median : 1.390 Median :76.55 Median :22.49 Median :3.770 Median :5.700
Mean :26.24 Mean :29.57 Mean :23.98 Mean : 3.686 Mean :76.81 Mean :21.78 Mean :3.744 Mean :5.587
3rd Qu.:27.29 3rd Qu.:31.07 3rd Qu.:24.83 3rd Qu.: 4.020 3rd Qu.:81.72 3rd Qu.:25.07 3rd Qu.:4.140 3rd Qu.:6.550
Max. :29.58 Max. :34.04 Max. :27.26 Max. :198.270 Max. :93.36 Max. :28.52 Max. :6.170 Max. :9.160

4. Análise Exploratória: A História do Clima de Recife nos Últimos 15 Anos

Nesta seção, constrói-se a narrativa climática de Recife, partindo de uma visão macro das tendências de longo prazo e mergulhando progressivamente nos padrões sazonais e diários.

4.1 A Febre Silenciosa: Evidências de Aquecimento em Recife

A primeira e mais fundamental pergunta é: a cidade está ficando mais quente? Para responder esta pergunta, analisa-se a tendência da temperatura média e, mais importante, das temperaturas mínimas e máximas, pois elas revelam histórias diferentes sobre o aquecimento diurno e noturno.

4.1.1 Tendência Geral da Temperatura Média

ggplot(dados_limpos, aes(x = data, y = temp_media_c)) +
  geom_line(alpha = 0.2, color = "gray60") +
  geom_smooth(method = "loess", se = FALSE, color = "#d95f02", span = 0.2) +
  labs(
    title = "Série Temporal da Temperatura Média Diária em Recife (2010-2024)",
    subtitle = "A linha laranja destaca a tendência de longo prazo, mostrando um aquecimento gradual.",
    x = "Ano",
    y = "Temperatura Média (°C)"
  ) +
  theme_minimal(base_size = 14)

O gráfico da série temporal da temperatura média diária serve como o primeiro e mais importante panorama do clima de Recife na última década e meia. À primeira vista, a linha cinza revela a “pulsação” diária do tempo: uma variabilidade constante e ruidosa que reflete a passagem de dias mais quentes e mais frios. No entanto, observando-se com mais atenção, dois padrões dominantes e sobrepostos emergem com clareza: um ciclo sazonal repetitivo e uma tendência de longo prazo inequívoca.

  • O Ritmo das Estações (Sazonalidade): O padrão ondulatório que se repete a cada ano representa a assinatura da sazonalidade em Recife. Os picos da onda, que ocorrem consistentemente no início e no final de cada ano (correspondendo ao verão no hemisfério sul), marcam os períodos mais quentes. Em contrapartida, os vales, situados no meio do ano (inverno, entre junho e agosto), representam os períodos mais amenos. A amplitude dessa onda, embora clara, não é extrema, o que é característico de um clima tropical litorâneo, onde a influência do oceano modera as variações de temperatura.
  • A Tendência de Aquecimento (Linha de Base Ascendente): O elemento mais crítico deste gráfico é a linha de tendência laranja, suavizada pelo método LOESS. Ela funciona como a “espinha dorsal” da série temporal, filtrando o ruído diário e a sazonalidade para revelar a direção fundamental do clima. A inclinação dessa linha é inequivocamente ascendente. Vemos que a linha de base da temperatura, que se situava abaixo 26 °C no início de 2010, sobe de forma persistente ao longo dos anos, alcançando uma média de 27°C já no final do período analisado. Isso representa um aumento na temperatura média de base de cerca de um grau Celsius em 15 anos, um valor significativo em termos climatológicos.
  • A Anomalia Recente (2023-2025): A história contada por esta tendência atinge um clímax no período mais recente. Desde 2023 pode-se notar um período anomalamente quente. Não apenas os picos de temperatura são os mais altos de toda a série histórica, mas os próprios vales (períodos mais “frios”) situam-se em um patamar de temperatura que era considerado “quente” no início da década anterior. Essa observação sugere que não estamos apenas diante de uma tendência linear e gradual, mas possivelmente de uma aceleração do aquecimento nos anos mais recentes, o que torna a análise de extremos ainda mais pertinente.

Em suma, este gráfico não apenas confirma a hipótese de aquecimento para Recife, mas detalha como ele ocorre: sobreposto a um ritmo sazonal constante, a temperatura fundamental da cidade está subindo, com eventos recentes que sugerem uma intensificação desse processo.

4.1.2 A Frequência de Dias e Noites Quentes está Aumentando?

Enquanto a análise da temperatura média revela a tendência geral, o verdadeiro impacto do aquecimento climático é frequentemente sentido nos extremos.

# Calcula os limiares (percentil 90)
limiar_dia_quente <- quantile(dados_limpos$temp_max_c, 0.90)
limiar_noite_quente <- quantile(dados_limpos$temp_min_c, 0.90)

# Conta os dias e noites quentes por ano
contagem_extremos_temp <- dados_limpos %>%
  group_by(ano) %>%
  summarise(
    dias_quentes = sum(temp_max_c > limiar_dia_quente),
    noites_quentes = sum(temp_min_c > limiar_noite_quente)
  )

# Prepara os dados para plotagem
contagem_extremos_longo <- contagem_extremos_temp %>%
  pivot_longer(
    cols = c("dias_quentes", "noites_quentes"),
    names_to = "tipo_extremo",
    values_to = "numero_dias"
  )

# Plota a tendência de dias e noites quentes
ggplot(contagem_extremos_longo, aes(x = ano, y = numero_dias, color = tipo_extremo)) +
  geom_line(linewidth = 1) +
  geom_point(size = 3) +
  geom_smooth(method = "lm", se = FALSE, linetype = "dashed") +
  facet_wrap(~tipo_extremo, scales = "free_y", labeller = labeller(tipo_extremo = c("dias_quentes" = "Dias Quentes (Máx > 30.8°C)", "noites_quentes" = "Noites Quentes (Mín > 24.2°C)"))) +
  labs(
    title = "Aumento na Frequência Anual de Dias e Noites Quentes em Recife",
    subtitle = "Linhas pontilhadas mostram a tendência linear de aumento para ambos os extremos.",
    x = "Ano",
    y = "Número de Dias no Ano Acima do Limiar"
  ) +
  theme_minimal(base_size = 14) +
  theme(legend.position = "none")

Este gráfico disseca a tendência de aquecimento em dois componentes cruciais e com impactos distintos: Dias Quentes (aquecimento diurno) e Noites Quentes (aquecimento noturno). A metodologia consiste em definir um limiar estatístico para cada um (o percentil 90 de todo o período, ou seja, os 10% dias/noites mais quentes da série histórica) e, em seguida, contar a ocorrência anual desses eventos.

  • A Tendência Inequívoca das “Noites Quentes”: O painel da direita conta a história mais alarmante. A linha de tendência (pontilhada azul) para o número de noites quentes (dias em que a temperatura mínima não desceu abaixo de 24.2°C) é acentuadamente ascendente. Se no início da década (2010-2012) a ocorrência de noites quentes era esporádica, com menos de 20 eventos por ano, na década seguinte este número cresce de forma expressiva e consistente. O pico em 2024 é particularmente notável, superando 100 noites quentes, um valor que seria inimaginável no início do período. Este aquecimento noturno acelerado é um fenômeno globalmente documentado (IPCC, 2021) e tem implicações sérias. A ausência de um resfriamento noturno adequado impede que os ecossistemas e os corpos humanos se recuperem do estresse térmico diurno, aumentando o risco para a saúde, especialmente para populações vulneráveis como idosos e crianças, e elevando o consumo de energia para refrigeração.
  • A Variabilidade dos “Dias Quentes”: O painel da esquerda, referente aos dias quentes (temperatura máxima acima de 30.8°C), também exibe uma tendência de aumento, mas com uma dinâmica diferente. A variabilidade interanual é muito maior. Observamos picos de alta frequência em anos específicos, como 2013, 2020 e 2021 e, de forma extrema, em 2024, intercalados por anos com uma frequência menor. O ano de 2024 se destaca como uma anomalia sem precedentes, com quase 100 dias superando o limiar. Isso sugere que o aquecimento diurno em Recife pode se manifestar não como um aumento gradual e constante, mas sim através de “saltos”, com anos de calor extremo se tornando mais frequentes e intensos.

Ao comparar os dois painéis, a conclusão é robusta: o clima de Recife está se tornando mais extremo em ambas as pontas do ciclo diário. Contudo, a tendência para o aumento de noites quentes é mais estável e progressiva, indicando uma mudança fundamental na linha de base da temperatura mínima. Por outro lado, a tendência para os dias quentes, embora crescente, é marcada por uma maior volatilidade e por picos que se tornam cada vez mais extremos. Juntos, esses gráficos pintam um quadro preocupante de um clima que não só está aquecendo em média, mas cuja frequência de eventos de estresse térmico, tanto diurnos quanto noturnos, está aumentando significativamente.

4.2 A Água que Cai: Análise dos Padrões de Precipitação

A temperatura conta apenas parte da história. Em uma cidade tropical como Recife, a água é um elemento definidor. Agora, analisa-se o tanto o volume total quanto a intensidade da precipitação.

4.2.1 Variabilidade Interanual: Anos Secos e Chuvosos

dados_limpos %>%
  group_by(ano) %>%
  summarise(chuva_total_anual = sum(precipitacao_mm)) %>%
  ggplot(aes(x = factor(ano), y = chuva_total_anual, fill = chuva_total_anual)) +
  geom_col(show.legend = FALSE) +
  scale_fill_gradient(low = "#ffffcc", high = "#0c2c84") +
  geom_text(aes(label = round(chuva_total_anual)), vjust = -0.5, size = 3.5) +
  labs(
    title = "Precipitação Total Anual em Recife (2010-2024)",
    subtitle = "O gráfico mostra a grande variabilidade no volume de chuva acumulado a cada ano.",
    x = "Ano",
    y = "Precipitação Total (mm)"
  ) +
  theme_minimal(base_size = 14) +
  theme(axis.text.x = element_text(angle = 45, hjust = 1))

Este gráfico de barras do total pluviométrico anual é fundamental para compreender a dinâmica hídrica de Recife em uma escala de tempo mais longa. Ele se afasta da análise diária e revela um dos traços mais marcantes e desafiadores do clima do Nordeste brasileiro: a extrema variabilidade interanual. A mensagem visual é imediata e clara: a quantidade de chuva que cai sobre a cidade em um ano pode ser drasticamente diferente do ano seguinte.

  • A Oscilação entre Extremos: A “gangorra” pluviométrica é evidente. O período de 15 anos é marcado por picos e vales pronunciados. O ano de 2011 surge como um extremo úmido, registrando um volume colossal de 1956 mm, quase o dobro da precipitação do ano seguinte. Em forte contraste, 2012 foi um ano de seca severa, com um total de apenas 976 mm. Outros anos notavelmente chuvosos incluem 2017 (1635 mm) e 2022 (1841 mm). Essa alternância entre anos muito úmidos e muito secos é uma característica climatológica da região, frequentemente associada a fenômenos oceano-atmosféricos de grande escala, como o El Niño-Oscilação Sul (ENOS). Anos de La Niña (esfriamento das águas do Pacífico Equatorial) tendem a favorecer chuvas mais abundantes no leste do Nordeste, enquanto anos de El Niño (aquecimento) estão frequentemente correlacionados com condições de seca.
  • Ausência de Tendência Linear Clara: Diferentemente da temperatura, que mostrou uma clara tendência de aquecimento, a precipitação total anual não exibe uma tendência linear óbvia de aumento ou diminuição ao longo do período. A linha que conecta os topos das barras seria errática, sem uma direção definida. Isso sugere que, para o volume total, a principal característica é a variabilidade e não uma mudança direcional. A história contada aqui não é sobre “chover mais” ou “chover menos” em termos de volume total ao longo do tempo, mas sim sobre a intensidade e a frequência com que essa chuva acontece, como exploraremos na próxima seção.

A alta variabilidade interanual impõe enormes desafios para a gestão urbana. Anos como 2011 e 2022 colocam uma pressão imensa sobre os sistemas de drenagem e a Defesa Civil, aumentando drasticamente o risco de inundações, alagamentos e deslizamentos de encostas. Por outro lado, anos secos como 2012 e 2015 testam a resiliência dos sistemas de abastecimento de água, podendo levar a crises hídricas e racionamentos. O planejamento urbano em Recife, portanto, precisa ser dual: deve ser robusto o suficiente para lidar com o excesso de água em anos de La Niña e, ao mesmo tempo, resiliente para suportar a escassez em anos de El Niño. A falta de uma tendência clara torna o planejamento ainda mais complexo, pois ele deve ser baseado em cenários de risco variável em vez de uma projeção linear.

4.2.2 Intensidade da Chuva: Chove Mais Forte?

Após constatar que o volume total de chuva anual é extremamente variável, a próxima questão lógica é investigar a forma como essa chuva é entregue. Uma mudança no regime climático pode não alterar o volume total, mas sim concentrá-lo em eventos mais curtos e intensos. Para explorar essa hipótese, definiu-se um “dia de chuva intensa” como um dia em que a precipitação superou o limiar de 15.6 mm, valor que corresponde ao percentil 95 de todos os dias em que houve alguma precipitação. Em outras palavras, analisou-se a frequência anual dos 5% dias mais chuvosos de todo o período.

# Define o limiar para "chuva intensa"
limiar_chuva_intensa <- quantile(dados_limpos$precipitacao_mm[dados_limpos$precipitacao_mm > 0], 0.95)

# Conta o número de dias com chuva intensa por ano
contagem_chuva_intensa <- dados_limpos %>%
  group_by(ano) %>%
  summarise(dias_chuva_intensa = sum(precipitacao_mm > limiar_chuva_intensa))

# Plota a tendência
ggplot(contagem_chuva_intensa, aes(x = ano, y = dias_chuva_intensa)) +
  geom_line(color = "#0c2c84", linewidth = 1) +
  geom_point(color = "#0c2c84", size = 3) +
  geom_smooth(method = "lm", se = FALSE, color = "black", linetype = "dashed") +
  labs(
    title = "Frequência Anual de Dias com Chuva Intensa em Recife",
    subtitle = paste("Chuva intensa definida como precipitação diária >", round(limiar_chuva_intensa, 1), "mm (percentil 95)"),
    x = "Ano",
    y = "Número de Dias com Chuva Intensa"
  ) +
  theme_minimal(base_size = 14)

Analisando os resultados obtidos:

  • A Volatilidade dos Eventos Extremos: O gráfico da frequência anual de dias de chuva intensa espelha a alta variabilidade que observamos no volume total. O ano de 2011, que foi o mais chuvoso em volume total, também foi, de longe, o ano com a maior frequência de eventos de chuva intensa, registrando 40 dias acima do limiar. Outros anos com picos notáveis na frequência de chuvas intensas incluem 2019 e 2022, que também foram anos relativamente úmidos em termos de volume total. Isso confirma uma relação esperada: anos com mais chuva total são, em geral, anos com mais eventos de chuva extrema. Todavia, alguns anos, como 2017, seguiram o caminho inverso, mesmo sendo um ano de muita precicipatação total, acabou sendo um dos dos com menos dias de chuva intensa, confirmando que o alto volume provavavelmente se deve a eventos específicos.

  • Uma Tendência Contraintuitiva: O aspecto mais surpreendente e academicamente interessante deste gráfico é a linha de tendência linear (pontilhada). Contrariando a expectativa inicial de que o aquecimento global levaria a uma intensificação dos eventos de chuva, a tendência para a frequência de dias de chuva intensa em Recife, neste período de 15 anos, é ligeiramente negativa. Isso significa que, apesar da enorme variabilidade, ao traçar uma linha reta através dos pontos, ela aponta para uma discreta diminuição na ocorrência anual desses eventos.

Como pode-se conciliar este resultado com os episódios de desastres recentes em Recife? A chave está em não interpretar a linha de tendência de forma isolada. A história que os dados contam é de volatilidade e risco, não de uma tendência linear simples. Embora a tendência linear seja de leve declínio, a ocorrência de anos com um número muito elevado de eventos extremos (como os 40 dias em 2011 ou os mais de 20 dias em 2019 e 2022) continua a ser uma característica marcante do clima local. O risco para a cidade não reside em um aumento gradual e previsível, mas sim na ocorrência errática e imprevisível de anos com uma alta concentração de chuvas torrenciais. A leve tendência de queda pode ser influenciada por um ponto de partida muito alto (o pico de 2011) e pode não representar uma mudança de longo prazo, mas sim um ciclo de variabilidade de década. Portanto, a conclusão prática para a gestão de riscos não muda: a cidade precisa estar preparada para anos com uma alta frequência de chuvas extremas, independentemente da tendência linear de longo prazo ser ligeiramente negativa neste recorte temporal específico.

4.3 A Dança dos Elementos: Sazonalidade e Correlações

O clima é um sistema interconectado. Nesta seção, explora-se como as variáveis “dançam” juntas ao longo do ano.

4.3.1 Perfil Climatológico Anual de Recife

Para construir um perfil climatológico completo, é essencial dissecar o comportamento das principais variáveis ao longo dos meses. Utilizou-se aqui os gráficos de violino, uma ferramenta de visualização poderosa que combina a informação de um boxplot com a de um gráfico de densidade. Brevemente, cada “violino” representa um mês: a sua largura mostra onde os valores diários são mais frequentes, o ponto branco central indica a mediana (o valor do meio), e a caixa retangular interna delimita o intervalo interquartil (os 50% centrais dos dados). Esta visualização permite comparar não apenas as médias, mas a forma completa da distribuição de dados de cada mês.

# Gráfico de violino para a temperatura
p1 <- ggplot(dados_limpos, aes(x = mes, y = temp_media_c, fill = mes)) +
  geom_violin(trim = FALSE, show.legend = FALSE) +
  geom_boxplot(width = 0.1, fill = "white", show.legend = FALSE) +
  scale_fill_viridis_d(option = "plasma") +
  labs(
    title = "Distribuição Mensal da Temperatura Média",
    subtitle = "Gráficos de violino mostrando a forma da distribuição e a mediana para cada mês.",
    x = "Mês",
    y = "Temperatura Média Diária (°C)"
  ) +
  theme_minimal(base_size = 14) +
  theme(axis.text.x = element_text(angle = 45, hjust = 1))

# Gráfico de violino para a precipitação
p2 <- ggplot(dados_limpos, aes(x = mes, y = precipitacao_mm, fill = mes)) +
  geom_violin(trim = FALSE, show.legend = FALSE) +
  scale_y_log10() + # Usando escala log para melhor visualizar a distribuição
  geom_boxplot(width = 0.1, fill = "white", show.legend = FALSE, outlier.shape = NA) +
  scale_fill_viridis_d(option = "mako") +
  labs(
    title = "Distribuição Mensal da Precipitação Diária",
    subtitle = "A maior parte dos dias tem pouca chuva, com eventos extremos nos meses de inverno.",
    x = "Mês",
    y = "Precipitação Diária (mm, escala log)"
  ) +
  theme_minimal(base_size = 14) +
  theme(axis.text.x = element_text(angle = 45, hjust = 1))

# Mostrando os gráficos
p1

p2

O primeiro gráfico de violino revela o ciclo anual da temperatura média diária.

  • O Ciclo Sazonal: A “onda” formada pelos violinos ao longo do eixo horizontal é a representação visual clara do ciclo das estações em Recife. Os meses de verão, de janeiro a março, exibem violinos posicionados mais acima no eixo vertical, com medianas consistentemente em torno de 27.5-28°C, indicando os períodos mais quentes do ano. À medida que o ano avança para o inverno, os violinos “caem”, atingindo os pontos mais baixos em julho e agosto, com medianas em torno de 24°C, marcando os meses mais amenos. A partir de setembro, os violinos começam a subir novamente, completando o ciclo.
  • A Forma da Distribuição: A forma simétrica da maioria dos violinos indica que, para um dado mês, as temperaturas diárias tendem a se distribuir de forma bastante uniforme em torno da mediana. A variabilidade dentro de cada mês (o comprimento do violino) é relativamente contida, uma marca do clima tropical marítimo, onde o oceano atua como um termorregulador, evitando extremos de calor e frio. Mesmo assim, os meses de verão (janeiro a março) mostram violinos ligeiramente mais “esticados”, sugerindo uma variabilidade um pouco maior em comparação com os meses de inverno.

O segundo gráfico de violino conta uma história muito mais dramática e contrastante, revelando a dualidade do regime de chuvas. A utilização de uma escala logarítmica no eixo vertical é crucial aqui, pois permite visualizar tanto a alta frequência de dias com pouca ou nenhuma chuva quanto a ocorrência de eventos de chuva extrema em uma mesma escala.

  • O Regime das Chuvas de Outono-Inverno (Abril a Julho): Os violinos para estes meses são a representação clássica de um risco climático. Eles possuem uma base extremamente larga e achatada próximo de zero, o que significa que a esmagadora maioria dos dias, mesmo na estação chuvosa, tem pouca ou nenhuma precipitação. No entanto, a característica mais importante é a cauda longa e fina que se estende verticalmente para cima. Esta cauda longa representa os dias de chuva extrema. Sua existência, mesmo que fina (indicando raridade), mostra que há uma probabilidade significativa de ocorrerem eventos de precipitação torrencial (acima de 10 mm e, em casos extremos, acima de 100 mm) nestes meses. É a combinação de solo já saturado pela chuva frequente e a ocorrência desses eventos extremos que eleva o risco de desastres.
  • O Regime da Estiagem de Primavera-Verão (Setembro a Fevereiro): Em nítido contraste, os violinos para estes meses são muito mais curtos e “atarracados” na base. A cauda superior é significativamente reduzida ou quase inexistente. Isso indica que, embora ainda possa chover, a probabilidade de ocorrer um evento de chuva verdadeiramente extremo é muito menor. O clima é dominado por dias secos ou com chuvas de baixa intensidade.

Juntos, estes dois gráficos contam a história de um ano climático dividido em duas estações bem definidas: uma quente e seca, onde a principal característica é a temperatura elevada, e outra mais amena e dramaticamente úmida, onde o risco não está na chuva constante, mas sim na ocorrência imprevisível de eventos de chuva de alta intensidade.

4.3.2 Matriz de Correlação: Entendendo as Conexões

Se a análise sazonal mostra quando as coisas acontecem, a matriz de correlação mostra por que e como elas acontecem em conjunto. Este heatmap visualiza o coeficiente de correlação de Pearson, uma medida que quantifica a força e a direção de uma relação linear entre duas variáveis. A escala de cores vai do azul forte (correlação positiva próxima de +1) ao vermelho forte (correlação negativa próxima de -1), com cores claras indicando ausência de correlação linear (próximo de 0). A análise desta matriz revela a intrincada “coreografia” do clima de Recife.

# Seleciona as variáveis numéricas
dados_numericos <- dados_limpos %>%
  select(temp_media_c, temp_max_c, temp_min_c, precipitacao_mm, umidade_relativa_perc, radiacao_solar_kwh_m2, vel_vento_ms, amplitude_termica_c)

# Calcula a matriz de correlação
matriz_cor <- cor(dados_numericos)

# Cria o gráfico de correlação
corrplot(matriz_cor, 
         method = "color",
         type = "upper",
         order = "hclust",
         addCoef.col = "black",
         tl.col = "black",
         tl.srt = 45,
         diag = FALSE,
         mar = c(0,0,1,0),
         title = "Matriz de Correlação das Variáveis Climáticas")

Os Acoplamentos Climáticos (Correlações Positivas):

  • O Bloco de Temperaturas (Azul Escuro Superior): A fortíssima correlação entre temp_min_c, temp_media_c e temp_max_c (todas > 0.9) é esperada e serve como uma validação da consistência dos dados. Um dia com uma manhã quente (mínima alta) tende a ter uma tarde quente (máxima alta) e, consequentemente, uma média alta.
  • Radiação Solar como Motor Térmico: A radiacao_solar_kwh_m2 exibe uma forte correlação positiva com a temp_max_c (+0.59) e uma correlação ainda mais forte com a amplitude_termica_c (+0.73). Esta é a física básica em ação: dias com alta incidência de radiação solar (céu limpo) permitem um aquecimento diurno muito mais intenso, elevando a temperatura máxima e, por consequência, aumentando a diferença entre o dia e a noite (amplitude térmica).
  • O Efeito da Umidade na Chuva: A correlação positiva, embora moderada, entre precipitacao_mm e umidade_relativa_perc (+0.54) é igualmente importante. Ela nos diz que, embora nem todo dia úmido resulte em chuva, a presença de chuva está fortemente associada a um ambiente de alta umidade. A umidade é o “combustível” para a precipitação.

Os Antagonismos Climáticos (Correlações Negativas). Este é o lado mais revelador da matriz, mostrando as forças que se opõem no sistema climático local:

  • Umidade vs. Amplitude Térmica: A Grande Batalha (-0.84): A correlação mais forte de toda a matriz é a relação negativa entre umidade_relativa_perc e amplitude_termica_c. Este valor de -0.84 revela a principal dinâmica do conforto térmico em Recife. Em dias muito úmidos, o vapor d’água na atmosfera atua como um “cobertor”: durante o dia, ele ajuda a bloquear parte da radiação solar (limitando a temperatura máxima) e, à noite, ele impede que o calor irradiado pela superfície escape para o espaço (mantendo a temperatura mínima elevada). O resultado é uma amplitude térmica “achatada”, pequena. Em dias secos, o oposto ocorre, permitindo dias muito quentes e noites proporcionalmente mais frescas.
  • O Eixo Chuva-Sol (-0.62): A forte correlação negativa entre precipitacao_mm e radiacao_solar_kwh_m2 é a representação numérica da experiência cotidiana: dias chuvosos são dias nublados e escuros. A presença de nuvens de chuva bloqueia a radiação solar direta de alcançar a superfície.
  • Umidade e Radiação Solar (-0.74): De forma complementar ao ponto anterior, a alta umidade está fortemente associada a uma menor radiação solar. Isso ocorre porque a alta umidade é uma precursora da formação de nuvens, que, por sua vez, bloqueiam a luz do sol.

É interessante notar que a velocidade do vento (vel_vento_ms) apresenta correlações muito fracas com quase todas as outras variáveis (coeficientes próximos de 0). Isso não significa que o vento não seja importante, mas sim que sua relação linear com as outras variáveis não é forte. Sua influência no clima de Recife é mais complexa e pode estar relacionada a sistemas meteorológicos específicos (como brisas marítimas) que não são capturados por uma simples correlação linear diária.

5. Discussão

A fase de Análise Exploratória de Dados revelou tendências e padrões claros nos dados climáticos de Recife. A presente discussão coloca estes achados em diálogo com a literatura científica, buscando interpretar o que os nossos resultados significam no contexto mais amplo do conhecimento sobre o clima regional. A análise confirmou inequivocamente uma tendência de aquecimento para Recife no período de 2010 a 2024. Mais especificamente, o aumento acentuado na frequência de “noites quentes”, ou seja, de temperaturas mínimas elevadas, é um achado de grande relevância. Este resultado não apenas corrobora as projeções de macroescala do IPCC (2021), mas também se alinha perfeitamente com estudos de tendências observadas no Nordeste, como os de Lyra et al. (2014), que também encontraram tendências de aumento mais fortes nas temperaturas mínimas do que nas máximas. A análise realizada neste trabalho, utilizando um dataset mais recente, reforça que este fenômeno persiste e pode estar se intensificando. Este aquecimento noturno, combinado com o efeito de Ilha de Calor Urbana documentado para Recife por Azevedo, Maia e Souza (2020), cria um cenário de alto estresse térmico, com implicações diretas para a saúde, como apontado por Hacon et al. (2016).

Um dos resultados mais instigantes desta análise foi o comportamento da precipitação. Enquanto o volume total anual mostrou alta variabilidade, mas sem uma tendência linear clara, a frequência de dias de “chuva intensa” exibiu uma leve tendência negativa no período. Este achado parece, à primeira vista, contradizer estudos como o de Da Silva e de Souza (2018), que apontam para uma intensificação geral da chuva na região. Esta aparente contradição, no entanto, é extremamente valiosa, pois destaca a importância da escala de tempo e da variabilidade de década. O período de 15 anos analisado pode ter sido dominado por fases específicas do ENOS ou de outros modos de variabilidade que mascararam a tendência de longo prazo induzida pelo aquecimento global. O estudo sobre secas de Bezerra e de Souza (2019) reforça como o NEB é palco de ciclos de seca e chuva intensa. Portanto, esse resultado não nega a tese da intensificação, mas adiciona uma camada de complexidade: a mensagem para a gestão de riscos não deve ser baseada em uma simples tendência linear, mas sim na preparação para a alta volatilidade e para a ocorrência de anos com um número extremo de eventos de chuva, como foi 2011 nessa série histórica.

A forte correlação negativa encontrada entre a umidade relativa e a amplitude térmica (-0.84) é uma demonstração empírica de um princípio físico fundamental do clima tropical úmido, validando a coerência interna do dataset. Ao sobrepor os achados com os estudos de vulnerabilidade, o quadro se torna completo. A tendência de noites mais quentes impacta uma população densa e, por vezes, em habitações precárias. A ocorrência errática de anos com alta frequência de chuvas intensas ameaça diretamente as comunidades que vivem nas encostas e várzeas, como mapeado por Ferreira et al. (2021). E tudo isso ocorre tendo como pano de fundo a ameaça inexorável da elevação do nível do mar, que pressiona a infraestrutura costeira da cidade (NEVES; MUEHE, 2015; ARRAES; DE ANDRADE, 2022).

6. Considerações Finais

Este trabalho se propôs a construir uma narrativa detalhada sobre o clima recente de Recife, fundamentada em dados diários e contextualizada pela literatura científica. A análise realizada permite concluir que o clima de Recife está em um estado de mutação ativa. A cidade está, de fato, aquecendo, com um aumento particularmente alarmante na frequência de noites quentes. Os padrões de chuva, embora não mostrem uma tendência linear clara em seu volume total, são caracterizados por uma volatilidade extrema e pela ocorrência de anos com alta frequência de eventos de chuva intensa, que representam um risco agudo para a população.

A metodologia de Análise Exploratória de Dados, enriquecida por uma sólida revisão de literatura, provou ser uma abordagem poderosa, permitindo não apenas identificar padrões nos dados, mas também interpretar seu significado e adicionar nuances importantes, como a aparente contradição na tendência de chuvas intensas. Os principais insights desta história climática são que o aquecimento noturno é o sinal mais forte de mudança, o risco da chuva reside na volatilidade, não em uma tendência simples, e o clima local funciona como um sistema integrado e conectado.

As implicações desses achados são diretas. A cidade de Recife precisa acelerar seu planejamento de adaptação. Isso inclui desde revisões de códigos de construção para promover o conforto térmico, passando por investimentos massivos em drenagem e contenção de encostas, até o fortalecimento de sistemas de alerta da Defesa Civil e de vigilância em saúde. Para a comunidade acadêmica, a análise aponta para a necessidade de estudos que investiguem os drivers da variabilidade da precipitação em escalas de década. Para a sociedade, os dados fornecem a evidência necessária para exigir e apoiar políticas de adaptação climática ambiciosas.

As limitações deste estudo, como a resolução espacial dos dados de reanálise, abrem caminhos para trabalhos futuros, como a validação e o downscaling dos resultados com dados de estações meteorológicas locais, a aplicação de modelos de atribuição para quantificar a influência antropogênica nas tendências observadas, e a expansão da análise para incluir os impactos socioeconômicos diretos dos eventos extremos identificados.

7. Referências

ARRAES, F. A. C.; DE ANDRADE, C. A. Impactos da elevação do nível do mar na infraestrutura urbana do bairro de Boa Viagem, Recife-PE. Engenharia Sanitária e Ambiental, v. 27, n. 1, p. 123-134, 2022.

AZEVEDO, T. L. de; MAIA, A. G.; SOUZA, C. F. de. Análise da intensidade da ilha de calor urbana na cidade do Recife-PE. Revista Brasileira de Geografia Física, v. 13, n. 7, p. 3065-3077, 2020.

BEZERRA, B. G.; DE SOUZA, F. D. A. S. Análise de secas no Nordeste do Brasil utilizando o índice de precipitação padronizado. Revista Brasileira de Climatologia, v. 25, p. 238-254, 2019.

DA SILVA, C. M.; DE SOUZA, E. P. Tendências em extremos de precipitação e temperatura no Nordeste do Brasil. Revista Brasileira de Meteorologia, v. 33, n. 4, p. 688-699, 2018.

FERREIRA, A. G., et al. Vulnerabilidade socioambiental a desastres por inundação na cidade do Recife, Pernambuco. Revista de Geografia (Recife), v. 38, n. 2, p. 194-211, 2021.

GUEDES, R. L., et al. Validation of NASA/POWER reanalysis data for solar radiation in Northeast Brazil. Renewable Energy, v. 161, p. 94-105, 2020.

HACON, S. de S., et al. Impactos das mudanças climáticas na saúde no Brasil. Epidemiologia e Serviços de Saúde, v. 25, n. 1, p. 7-8, 2016.

IPCC. Climate Change 2021: The Physical Science Basis. Contribution of Working Group I to the Sixth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Cambridge University Press, 2021.

LYRA, G. B.; OLIVEIRA-JÚNIOR, J. F.; ZERI, M. Cluster analysis and trend detection of monthly rainfall and temperature in Alagoas state, Northeast of Brazil. International Journal of Climatology, v. 34, n. 13, p. 3576-3590, 2014.

MARENGO, J. A., et al. Assessment Report 1 of the Brazilian Panel on Climate Change. Base Científica das Mudanças Climáticas. Rio de Janeiro: PBMC, COPPE, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2017.

NEVES, R. M.; MUEHE, D. Vulnerabilidade da costa brasileira à elevação do nível do mar no século XXI. Revista da Gestão Costeira Integrada, v. 15, n. 3, p. 329-344, 2015.

STACKHOUSE, P. W. et al. POWER (Prediction of Worldwide Energy Resource) Project. NASA Langley Research Center, 2018.

TUKEY, J. W. Exploratory Data Analysis. Addison-Wesley, 1977.