Reinterpretação conceitual da Abordagem Documental do Didático

Imagine a professora Gertrudes preparando um plano de aula de estatística descritiva para o 7º ano do Ensino Fundamental. Ela usa o livro didático como recurso principal e segue direcionamentos quanto ao eixo temático e competências das diretrizes curriculares. Ela também incorpora à aula algumas visualizações gráficas de um software, as quais ela aprendeu em um curso de formação continuada.
Ela acredita que os estudantes aprendem melhor com visualizações e com atividades práticas, assim, inclui em seu plano de aula algumas questões em que esses realizarão uma prática baseada em medidas anatômicas da turma. Percebe também que precisará adaptar as atividades do livro didático. Desse modo, a professora Gertrudes, faz anotações com explicações extras - considerando as peculiaridades de sua turma de 7º ano, destacando os pontos que considera mais importantes no conteúdo.
As adaptações e inserções que realiza são resultado de sua intencionalidade pedagógica, permeada pelas ideias que desenvolveu durante suas práticas, as quais acredita e defende. O novo plano de ensino torna-se um documento didático da professora Gertrudes, que permite entender particularidades de sua interação com recursos que a influenciaram durante toda sua vida profissional, os quais podem auxiliar a explicar sua trajetória enquanto docente pela Abordagem Documental do Didático - ADD.
A ADD é uma teoria da área da didática da matemática que se propõe a compreender o desenvolvimento profissional dos professores por meio de sua interação com recursos que utilizam e concebem para o ensino. Seus expoentes são Luc Trouche, Ghislaine Gueudet e Birgit Pepin.(Trouche et al., 2020; Trouche, Gueudet, Pepin, 2020).

No decorrer desse glossário, serão apresentados os termos que fazem parte da ADD e auxiliam a explicar o desenvolvimento profissional dos professores com base em seus documentos didáticos, resultados da interação desses com recursos e esquemas de utilização.

Artefato

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Um artefato é uma ferramenta que tanto pode ser material (um livro, calculadora), como simbólico (um gráfico, um conteúdo). Um artefato é um material que tem potencialidade de ser transformado em um instrumento no ofício do(a) professor(a).

Documentos

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Os documentos são resultantes do processo de interação dos professores com os recursos. A associação dos recursos com os esquemas de utilização gera os documentos didáticos. O novo plano de aula da professora Gertrudes é um documento.

Esquemas

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É a forma como um(a) professor(a) utiliza um recurso. Os esquemas evoluem conforme se dá o desenvolvimento profissional docente e são dependentes do que é chamado de ‘invariantes operatórios’. A professora Gertrudes utiliza os recursos para ensino de estatística descritiva no 7º ano da maneira como foi apresentado no exemplo introdutório. Sua colega Marlene trabalha esse conteúdo usando o livro didático, entretanto, prefere que os estudantes não apenas visualizem graficamente as medidas descritivas, mas manipulem as informações, gerando as imagens em um software estatístico, pois as formas de utilização de um dado recurso podem ser diferentes de professor(a) para professor(a).

Gênese Documental

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É o processo de desenvolvimento de um documento. Pode partir do aprendizado do(a) professor (a) envolvido(a) e resultar na criação de um novo documento. No exemplo introdutório tem-se a gênese (criação) de um plano de aula relacionado a estatística descritiva para o 7º ano. Da gênese documental faz parte a instrumentação e a instrumentalização.

Instrumentação

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Instrumentação é o processo pela qual as especificidades e potencialidades de um recurso influenciam o(a) professor(a) e condicionam suas ações futuras. Quando a professora Gertrudes participou do curso de formação continuada aprendeu a usar um software estatístico para visualizar medidas estatísticas - esse conhecimento a influenciou no momento de planejar sua aula.

Instrumentalização

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Instrumentalização é o processo em que os hábitos e conhecimentos dos professores orientam as escolhas de recursos, transformando-os, adaptando-os e produzindo novas características condizente com suas necessidades, tornando suas propriedades enriquecidas. Quando professora Gertrudes adapta as questões do livro didático, não somente foi influenciada pela organização pedagógica do material, como interagiu com ele criando novas possibilidades de utilização.

Instrumento

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Instrumento se constitui em um objeto (artefato) relacionado a um esquema de utilização. Essa conceituação considera as construções que os professores fazem, a partir de um artefato ou a apropriação de esquemas de utilização apresentados a eles. O Software usado no exemplo introdutório é um instrumento.

Invariantes operatórios

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Os invariantes operatórios são o norte da utilização dos recursos e, dessa forma, da concepção destes. Podem ser consideradas ideias e crenças pedagógicas que o(a) professor(a) valoriza ao escolher um determinado esquema de utilização de um recurso.
Os invariantes podem ser de dois tipos: os teoremas-em-ato e os conceitos-em-ato. Os primeiros são proposições consideradas como verdadeiras - ideias pedagógicas valorizadas e assumidas pelo docente - suas crenças didáticas das necessidades de ensino, desenvolvidas durante seu processo de formação inicial e em serviço. Os conceitos-em-ato, são representações consideradas relevantes na esfera do conteúdo.

No exemplo, percebe-se invariantes operatórios quando a professora Gertrudes reflete que os alunos aprendem com mais eficiência em situações práticas e resolve utilizar as medidas anatômicas para contextualizar as estatísticas descritivas (teorema-em-ato) e quando ela pontua os conceitos mais importantes a serem ensinados (conceito-em-ato).

Investigação Reflexiva

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É uma construção metodológica para análise dos documentos docentes. Visa examinar a atividade dos professores através do seu trabalho de documentação. Se baseias nos seguintes princípios:

  • a ampla recolha dos recursos materiais utilizados e produzidos no decurso do trabalho de documentação;
  • o acompanhamento de longo prazo;
  • o acompanhamento dentro e fora da aula;
  • o acompanhamento reflexivo do trabalho de documentação;
  • a confrontação das visões do(a) professor(a) sobre seu trabalho de documentação e a materialidade desse trabalho.
  • Metaorquestração Instrumental

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    Um(a) professor(a) pode assumir diversas configurações de aula para um dado conteúdo (orquestração) e a interação entre elas é a metaorquestração. Entende-se por metaorquestração uma orquestração que ocorre sobre outra orquestração instrumental. Exemplificando, a professora Gertrudes inicia sua aula de estatística de forma expositiva e a seguir propõe aos (às) alunos(as) que, em grupos, efetuem medições e anotem em uma tabela para posterior discussões - essa é uma orquestração possível. Na próxima aula ela utiliza exercícios do livro didático e mostra a visualização gráfica das medidas com uso de um software estatístico. A interação dessas duas formas de aula é a metaorquestração instrumental.

    Metarrecursos

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    Entende-se como um dos níveis que pode assumir um recurso. Eles facilitam o acesso ao primeiro nível de recursos. Para exemplificar: um livro didático (recurso de conteúdo) pode ser encontrado por um site de busca (metarrecursos). Um terceiro nível de recursos é o recurso para trabalhar conteúdos, como um editor de texto ou um software estatístico, por exemplo.

    Orquestração instrumental

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    São diversas configurações didáticas que pode assumir um(a) professor(a) para uma dada aula. É uma combinação de recursos com os objetivos de ensino. Observe um exemplo em metaorquestração instrumental.

    Performance didática

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    Performance didática é a atuação do(a) docente que considera ajustes das configurações de sua aula e os modos de exploração de recursos, levando em conta as proposições dos(as) alunos(as) e as suas necessidades de aprendizagem. No exemplo introdutório a performance da professora Gertrudes está sujeita às necessidades de sua turma do 7º ano.

    Recursos

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    São todos os instrumentos que o(a) professor(a) utiliza para aprender e para ensinar. Podem ser livros, cadernos, conversas com seus pares, documentos curriculares, entre outros. Esses recursos demandam de criação, análise e até mesmo adaptações que permitem a sua utilização com objetivos de ensino e essa dinâmica vem a constituir a prática profissional docente.

    Recursos-mãe e recursos-filho

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    Recursos-mãe são aqueles que geram outros recursos considerando um movimento dialético. Os recursos-filhos são recursos que resultam da adaptação de outros documentos. Esses serão acumulados, organizados, estruturados, para constituir o sistema de recursos do professor, constantemente revisado, reutilizado, enriquecido e reestruturado. As atividades do livro didático da professora Gertrudes são recursos-mãe. As adaptações realizadas pela professora são recursos-filhos.

    Regras de ação

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    É a ação, impactada pelos invariantes operatórios, que remete ao uso de um dado recurso pelo(a) professor(a). Exemplo: Os enunciados das atividades propostas pela professora Gertrudes.

    Sistema de recursos

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    É o conjunto formado por todos os recursos para ensinar de um(a) professor(a). Se considerarmos a professora Gertrudes, tudo o que ela usa na elaboração de suas aulas: livros, atividades, conversas com os pares, diretrizes curriculares, vídeos, softwares, entre outros.

    Trajetória documental

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    A trajetória documental dos professores é uma maneira de explicitar as transformações na produção de recursos dos professores ao longo do tempo e a experiência documental de mostrar como essa transformação foi capitalizada pelo(a) professor(a) que, em hipótese, permite compreender questões em torno de seu desenvolvimento profissional.

    Referências

    TROUCHE, L.; GUEUDET G.; PEPIN B.; ROCHA K.; ASSIS C.; IGLIORI S. A abordagem documental do didático. DAD-Multilingual, p.1-14, 2020. Disponível em: hal-02664943v2. Acesso em 24 mai. 2024.

    TROUCHE, L; GUEUDET, G.; PEPIN, B. The documentational approach to didactics. ArXiv: Cornell University, 2020. DOI: https://doi.org/10.48550/arXiv.2003.01392