RESUMO
O presente estudo tem como principal foco abordar a dinâmica inflacionária brasileira no período da pandemia do coronavírus. O objetivo geral se debruça em identificar os impactos sofridos pela população mais pobre. Para tanto, definiram-se os objetivos específicos de conceituar a moeda e suas funções, conceituar o processo de inflação, no que confere às suas origens, tipos e efeitos, apresentar os índices de inflação e sistematizar o funcionamento do Regime de Metas de Inflação. Apresentam-se os canais de transmissão de política monetária, assim como propostas alternativas de controle inflacionário, que se referem ao arcabouço teórico pós-keynesiano. Em termos metodológicos, o trabalho possui natureza descritiva e exploratória, o tratamento dos resultados se dará de maneira qualitativa, utilizando fontes secundárias oficiais provenientes de renomados institutos de pesquisa brasileiros. Com o levantamento de informações ao longo da pesquisa e da análise dos dados, foi possível concluir que a população mais pobre foi mais afetada pelo processo inflacionário e pela perca real de renda proveniente da dinâmica de reajuste do salário- mínimo, sendo a mais penalizada entre as faixas de renda. Pode-se perceber o fracasso do Regime de Metas de Inflação como instrumento de controle inflacionário nos anos de 2021 e 2022. De fato, a inflação do período ficou acima da meta estabelecida, ainda que o BCB tenha utilizado altas taxas de juros para contenção de uma inflação que não possui origens provenientes do aquecimento da demanda.
Palavras-chave: inflação brasileira; regime de metas de inflação; pós-keynesianismo; coronavírus.
A pandemia de COVID-19 foi um marco recente que abalou a sociedade de maneira abrupta e apresentou desafios complexos em diversas áreas. Além da questão central sanitária foram afetados os campos profissional, educacional e econômico, principalmente pelas medidas de contenção à propagação da doença, que significaram, em termos práticos, nas restrições de mobilidade e isolamento social. No que tange aos impactos econômicos, num primeiro momento, pode ser observada a queda do nível de atividade econômica, o desarranjo das cadeias produtivas e a tentativa dos governos centrais de garantir uma mínima manutenção de renda para a população. Apesar do resfriamento da atividade econômica, pode-se perceber também o aumento dos níveis inflacionários em diversos países, tanto desenvolvidos quanto em desenvolvimento, a partir de 2021.
Nesse contexto, a inflação brasileira tem sido um tópico de discussão relevante na academia, e sobretudo, na sociedade em geral. Embora haja evidências que sugerem que as taxas de inflação foram relativamente baixas, principalmente em 2020, é necessário considerar que essa percepção de estabilidade inflacionária não é homogênea em todos os níveis da sociedade. Fatores como o aumento dos preços de alimentos e bens essenciais, assim como a desigualdade de renda, têm contribuído para o aumento da inflação entre as classes mais vulneráveis. Dentro desse cenário, são colocados em questionamento os instrumentos tradicionais de controle inflacionário, como o Regime de Metas de Inflação (RMI), tendo em vista que a origem da inflação tem causa na oferta de bens na economia, ao passo que o RMI atua no arrefecimento da demanda, por intermédio do aumento das taxas de juros.
Portanto, este trabalho tem como objetivo analisar como a população brasileira mais pobre foi afetada pela inflação em decorrência da pandemia de COVID- 19. Para tal objetivo necessita-se compreender o que é a moeda e as funções que ela desempenha na sociedade, esclarecer o conceito de inflação no que se refere às suas origens, tipos e efeitos. Se faz necessária a apresentação dos principais índices inflacionários, que mensuram os impactos da inflação em termos quantitativos, além de sistematizar o funcionamento do RMI, principal instrumento que o Estado dispõe para contenção do processo inflacionário. Apresentam-se os canais de transmissão de política monetária, assim como propostas alternativas de controle inflacionário, que se referem ao arcabouço teórico pós-keynesiano. No que se refere à metodologia, o trabalho possui natureza descritiva e exploratória, utilizando fontes secundárias oficiais provenientes de renomados institutos de pesquisa brasileiros. O tratamento dos resultados se dará de maneira qualitativa.
A apresentação do trabalho se dará na forma de três capítulos: no primeiro, de caráter predominantemente teórico, serão abordados os temas da moeda, inflação e política monetária, assim como a apresentação dos índices de preços e dos regimes de administração monetária, provenientes da teoria ortodoxa e do arcabouço teórico pós-keynesiano. O segundo capítulo analisa os dados oficiais de inflação brasileira no período compreendido entre 2020 e 2022, além de apresentar detalhadamente as causas que culminaram na aceleração dos preços, tanto do índice amplo quanto do decomposto por faixa de renda. Além disso, apresenta as informações relativas ao salário-mínimo do período e seu mecanismo de reajuste, sobretudo discorre sobre os efeitos negativos relacionados a inflação e perda de renda real dos mais pobres. O terceiro capítulo destina-se a analisar como foi o cumprimento do RMI pelo Banco Central do Brasil (BCB), assim como a condução da política monetária, no que se refere aos ajustes da taxa básica de juros da economia. Por fim, estabelecem-se críticas ao modelo utilizado e apresentam-se propostas alinhadas ao arcabouço pós- keynesiano, resultando em instrumentos anti-inflacionários mais robustos.
Dessa maneira, espera-se contribuir para uma melhor compreensão dos processos inflacionários e dos desafios enfrentado pela população mais vulnerável. Além disso, os resultados do trabalho também permitirão fornecer informações úteis para a elaboração de políticas governamentais destinadas a reduzir o impacto da inflação sobre os mais pobres.
A ciência econômica apresenta diferentes temáticas e conceitos que se desenvolvem, inicialmente, em cursos de introdução à economia e seus respectivos manuais. Nessas abordagens, são expostos conteúdos de maneira breve, simplificada e de fácil compreensão. Entretanto, apesar de muitos conceitos e modelos serem essencialmente técnicos, esta ciência compreende diferentes correntes de pensamentos, que desfazem a ideia de consenso acerca de muitas das análises econômicas. Especialmente sobre o tema da origem e da natureza da moeda, pode- se afirmar que:
“É difícil para economistas modernos concordar mesmo sobre a definição de moeda, e a maioria dos economistas reconhece várias diferentes funções da moeda. É possível que se possa encontrar uma”história de moeda” diferente dependendo da função que se identifique como a mais importante característica da moeda.” (WRAY, 2003, p.68)
Tendo em vista que as formulações acerca do tema da moeda estão intimamente ligadas às funções às quais ela desempenha, podemos destacar que: “Os economistas geralmente falam em três funções do dinheiro: meio de troca, unidade de contas e reserva de valor. Todos os manuais econômicos tratam o meio de troca como função primária” (GRAEBER, 2016, p.33).
De fato, na leitura de “Introdução à Economia”, de Nicholas Gregory Mankiw (manual adotado na maior parte dos cursos de Ciências Econômicas), é apresentado este conceito logo no início do capítulo que se debruça sobre o sistema monetário. A apresentação do conceito da moeda se dá pelo argumento da suposição de um cenário que nega a sua existência, reconhecendo como alternativa na troca de bens e serviços, o escambo. “Imagine, por um momento, que não haja nenhum item na economia que seja largamente aceito em troca de bens e serviços. As pessoas teriam de recorrer ao escambo – a troca de um bem ou serviço por outro – para obter as coisas de que precisam.” (MANKIW, 2019, p.484).
Nesse contexto a moeda possui a função de sanar a dupla coincidência de desejos, haja vista que seria necessário encontrar um par favorável à troca de mercadorias. “Numa economia desse tipo, diz-se que o comércio requer a dupla coincidência de desejos, ou seja, a improvável circunstância em que duas pessoas tenham, cada uma, os bens ou serviços que a outra deseja.” (MANKIW, 2019, p.484). Por conseguinte, o autor define: “Moeda é o conjunto de ativos na economia que as pessoas usam regularmente para comprar bens e serviços de outras pessoas” (MANKIW, 2019, p.485). Portanto, sob a ótica desse autor, a função primordial da moeda é servir como meio de troca nas transações de bens e serviços.
Entretanto, estudos das áreas antropológicas não encontram evidências históricas que sustentem a ideia de sociedades baseadas no escambo. Conforme destaca Caroline Humphrey: “Nunca foi descrito nenhum exemplo puro e simples da economia de escambo, muito menos de que o dinheiro tenha surgido do escambo; toda a etnografia existente sugere que esse tipo de economia nunca existiu” (GRAEBER, 2016, p.33). De fato, os primeiros registros históricos que se tem conhecimento são tabuletas mesopotâmias que constam registros de débito e crédito, provisões de distribuição e registros de valores devidos de aluguel de terras do templo, sendo que as especificações desses valores estão expressas em unidades de grãos e de prata. (GRAEBER, 2016).
Sendo assim, fica claro que a história da dívida está intimamente ligada com a história do dinheiro e que o caminho percorrido não foram as relações de escambo, passando pela origem da moeda e posteriormente o desenvolvimento dos sistemas de crédito, mas sim o movimento inverso. Isto posto, pode-se evidenciar outra função importante que a moeda possui, a de ser unidade de conta, o que significa que ela estabelece um padrão de medida que favorece os registros de débitos e créditos, além de expressar relações que permitem a comparação entre diferentes bens e serviços. (GRAEBER, 2016).
Segundo Mankiw (2019, p.485), outra função que se deve destacar é a capacidade da moeda de ser reserva de valor. Isso significa que ela garante a transferência de consumo no presente para um momento futuro. Portanto, explicita-se assim, as principais funções da moeda, que são: ser meio de troca, ser unidade de conta e ser reserva de valor.
Pode-se explicitar também os tipos nos quais a moeda se apresenta comumente, que são dois: a moeda-mercadoria e a moeda fiduciária. A moeda- mercadoria tem a característica de apresentar valor intrínseco, ou seja, ela possui valor de modo isolado, mesmo se não for utilizada como moeda. O exemplo mais comum se expressa na figura do ouro. Em contraponto, a moeda fiduciária é caracterizada por não possuir valor intrínseco. Seu valor se estabelece pelo vínculo de confiança na instituição que a emitiu, ou da sua imposição advinda da regulamentação governamental, também chamada de moeda de curso forçado. (MANKIW, 2019, p.486).
Após a compreensão da importância da moeda e suas diversas funções na economia, é necessário explicar um fenômeno que afeta diretamente o valor e o poder de compra da moeda: a inflação. A inflação é um tema de grande relevância econômica, pois está intrinsecamente ligada à estabilidade financeira de um país e ao bem-estar da população. Nesta próxima subseção, apresenta-se a definição de inflação, seus efeitos na economia, as origens do processo inflacionário e os instrumentos utilizados para seu controle.
Ao reconhecer a moeda com algo presente em nossa sociedade, cumprindo funções específicas - como a de ser reserva de valor - espera-se que ela possua estabilidade ao longo do tempo. Entretanto, isso não ocorre na totalidade dos casos. A referência à instabilidade da moeda, relaciona-se à temática da inflação. A inflação refere-se ao aumento contínuo e generalizado dos preços na economia, significando que o valor real do dinheiro é depreciado pelo processo inflacionário. Assim, a inflação é, por definição, um fenômeno monetário. (LUQUE; VASCONCELLOS, 2002).
Entretanto, essa não é a única forma de interpretar o fenômeno inflacionário. Segundo Luque e Vasconcellos (2002), pode-se interpretar o processo inflacionário como um conflito distributivo presente em uma economia mal administrada. Isso significa que os diversos agentes econômicos envolvidos disputam a distribuição da renda presente na economia e isso está no cerne dos problemas relativos à inflação. Pode-se citar, por exemplo, o conflito existente entre o setor público e o setor privado; quando o setor público expande seus gastos via emissão monetária em maior quantidade que o crescimento do produto da economia, provoca aceleração inflacionária, na visão dos economistas denominados “monetaristas”. Outra relação conflituosa existente na economia está relacionada com as instabilidades de salários e preços, traduzindo a disputa pelo produto entre trabalhadores e empregadores. No âmbito de uma economia globalizada, que possui trocas internacionais, também podem ocorrer processos inflacionários causados por flutuações de ordem externa. Choques externos de preços podem acarretar inflação interna, dependendo do grau de dependência e abertura da economia. Neste sentido, citam-se os clássicos choques de preço do petróleo, para ilustrar o caso da inflação importada.
Outros fatores presentes na economia também podem ser condicionantes para patamares inflacionários de maior intensidade ou duração. Em relação às estruturas de mercado, os níveis de preço se comportam de maneira diferente em cenários predominantes de oligopólios em relação a estruturas mais concorrenciais. No que concerne à organização trabalhistas das nações, também há diferenças de comportamento inflacionário, causadas pelo poder de barganha presentes nos sindicatos. Em relação ao grau de abertura econômica e interação com o mercado internacional também se salientam diferenças, pois algumas nações são mais dependentes comercialmente que outras, estando mais suscetíveis a choques de preços internacionais, refletindo nos preços internos de suas economias. De fato, países desenvolvidos possuem dinâmicas inflacionárias diferentes de países em desenvolvimento. Portanto, não se traduz em uma tarefa fácil e simplificada o diagnóstico do processo inflacionário, devido às suas diversas facetas, que divergem conforme as características do país e da época que se pretende analisar, de acordo com (LUQUE; VASCONCELLOS, 2002).
Em cenários de inflação elevada e oscilante, as consequências socioeconômicas podem ser diversas, desencadeando impactos negativos de forma generalizada na economia. Segundo Luque e Vasconcellos (2002), podem ser desencadeados efeitos: (i) sobre a distribuição de renda, (ii) sobre o mercado de capitais, (iii) sobre o balanço de pagamentos, (iv) sobre as expectativas e (v) sobre os pagamentos de empréstimos. Em relação à (i) distribuição da renda, há diminuição do poder de compra das classes que dependem de rendimentos fixos (salários), os quais estão condicionados a ajustes em determinados prazos legais. Pois, ao longo do tempo os orçamentos ficam cada vez mais reduzidos, até que ocorra um novo reajuste. Quando se refere (ii) ao mercado de capitais, a desvalorização da moeda desestimula os investimentos no mercado financeiro, enquanto estimula o investimento em bens tangíveis, como terras e imóveis. Níveis de inflação elevados podem aumentar os preços dos produtos domésticos comparativamente aos produtos internacionais, favorecendo as importações e gerando um desestímulo às exportações, alterando assim a dinâmica do (iii) balanço de pagamentos. Esse processo pode provocar um problema de déficit cambial, levando o Estado a utilizar instrumentos de desvalorização cambial para tornar os produtos domésticos mais competitivos no mercado internacional. Entretanto, com esse movimento, produtos importados essenciais para cadeias produtivas tornam-se mais caros, gerando novas elevações de preço, provenientes do repasse no aumento dos custos. No que se refere às (iv) expectativas futuras, cenários de aceleração inflacionária levam o setor empresarial a adotar uma postura de espera, limitando os investimentos na expansão da capacidade produtiva. Isso decorre da instabilidade de previsão de lucros, podendo impactar, inclusive, no nível de emprego futuro. Na esfera dos (v) pagamentos de empréstimos e impostos, no início do processo inflacionário, aqueles que possuem dívidas líquidas se beneficiam, pois essas dívidas não incorporam expectativas inflacionárias. Nesse cenário, os credores são os que sofrem perdas, pois recebem de volta uma quantia reduzida pela inflação, além de perderem tanto as taxas de juros normais quanto a renda que teriam obtido ao investir o dinheiro em alternativas mais lucrativas.
No que se referem às causas clássicas da inflação, conforme explicitado pelos autores Luque e Vasconcellos (2002), pode-se identificar duas correntes na literatura econômica: os que acreditam que as causas da inflação estão relacionadas ao excesso de demanda agregada, ou seja, inflação de demanda; e os que consideram que o processo inflacionário está intimamente relacionado com elevações nos custos, portanto, inflação de custos.
Segundo Luque e Vasconcellos (2002), a inflação de demanda, ou causa clássica de inflação, acontece na medida em que há um excesso de demanda agregada em relação à quantidade disponível de bens e serviços na economia – oferta agregada. Há maior propensão do acontecimento da inflação de demanda quando a economia se encontra em pleno emprego, uma vez que dificulta-se a capacidade de elevação na produção, causando impacto nos preços.
Os instrumentos comuns utilizados para a contenção da inflação relacionada à demanda são: atuação direta do governo, com a redução dos gastos públicos, na medida em que eles representam grande parte de consumo da economia. Ações indiretas governamentais com intuito de desestimular o consumo e o investimento privado, como a adoção de políticas monetárias que restrinjam a moeda e o crédito, ou ainda uma adoção de política fiscal com aumento da carga tributária sobre bens de consumo e de capital, (LUQUE; VASCONCELLOS, 2002). Ou seja, dessa forma, o agente governamental, espera em última instância, influenciar o comportamento dos outros agentes econômicos, reduzindo a pressão nos preços causada pelo aumento da demanda agregada e reduzindo os indicativos inflacionários.
Após apresentação desse conceito convencional, que insiste em afirmar que a origem dos desequilíbrios inflacionários está sempre relacionada com o lado da economia que trata da demanda, serão apresentadas as causas inflacionárias de custos, que estão relacionadas com o lado da economia que trata da oferta. Os autores que se identificam com esse pensamento estão alinhados com a teoria de Keynes, e os desenvolvimentos teóricos pós-keynesianos. Segundo Sicsú (2003), após identificar as causas de elevação de nível de preços, é possível classificar a inflação em seis tipos: (i) inflação de salários, (ii) inflação de lucros, (iii) inflação de rendimentos decrescentes, (iv) inflação importada, (v) choques inflacionários e (vi) inflação de impostos.
A (i) inflação de salários caracteriza-se pelo aumento nominal de salários, ceteris paribus, obtidos nas negociações entre trabalhadores e empresários. A elevação da remuneração do fator trabalho quando não acompanhada de aumentos de produtividade irá gerar inflação, na medida em que o custo por unidade de produto é aumentado e repassado para o preço final dos bens. Esse tipo de inflação se beneficia de cenários em que o hiato de emprego é reduzido (diferença entre a taxa de pleno emprego e o desemprego atual), onde a classe trabalhadora possui maior poder de barganha para negociação, e os empresários conseguem repassar mais facilmente essa elevação de custos aos preços.
A (ii) inflação de lucros, ou inflação de grau de monopólio, pode ser percebida em cenários onde os empresários decidem elevar as suas margens de lucro, tendo percebido que existe demanda suficiente que permite as elevações de preços. Esse tipo particular de inflação se apresenta com mais facilidade em mercados que possuem graus elevados de monopolização.
A (iii) inflação de retornos decrescentes acontece em cenários onde o hiato de emprego é muito baixo ou a economia já está operando em pleno emprego. Nesses casos, acredita-se que o capital se torna mais eficiente que o trabalho. Os empresários utilizam capital de última geração, porém, como há escassez de trabalhadores qualificados, contratam-se os de menor qualificação. Isso se traduz em perda de eficiência, ao passo que reduz a taxa de retorno do equipamento, elevando os custos por unidade de produto.
Em relação à (iv) inflação importada, essa é caracterizada quando aumentos de preços no exterior são capazes de influenciar a trajetória dos preços domésticos. Isso dependerá de fatores como a variação de preços no exterior, o valor da taxa de câmbio e do grau de abertura econômica da nação, de modo que quanto maior a integração com o comércio internacional, maior será o potencial da inflação importada. Nesse sentido, se a taxa de câmbio permanece constante, com aumento do preço de produtos em moeda estrangeira, que compõe a cesta de consumo doméstica, haverá inflação. Da mesma forma que, se os preços das mercadorias estrangeiras que compõem a cesta doméstica não se alteram em moeda estrangeira, mas a moeda doméstica se desvaloriza em relação à moeda estrangeira, haverá inflação. Com a globalização dos mercados, diversos produtos importados são utilizados como insumos em produções locais. A elevação de preços desses insumos representa custos mais elevados de produção, que serão repassados (ou não) para o consumidor final a depender do grau de monopólio dos mercados domésticos. O exemplo mais recente de inflação importada está relacionado com o mercado automobilístico, um setor caracterizado pela presença de oligopólios.
Os (v) choques de oferta inflacionários, inflação spot, ou ainda inflação de commodity, são caracterizados por choques domésticos de oferta que acabam por elevar os custos de produção. Esses podem estar relacionados com fatores climáticos, como quebras de safra, ou crises hídricas que impactam na geração de energia da matriz elétrica. Os níveis de hiato de emprego e de monopólio do mercado são fatores determinantes para evidenciar o repasse dos custos aos preços, ou a compressão das margens de lucro, apenas. Quanto menor o hiato de emprego e maior o grau de monopólio, maiores as chances de repasse de custos, causando inflação.
Por fim, no que se refere à (vi) inflação de impostos, quando uma alíquota de impostos é alterada, tudo mais constante, há um impacto proporcional nos níveis de preços. Como em outros exemplos evidenciados anteriormente, o repasse aos preços dependerá de dois fatores que estão relacionados com o hiato de emprego e com o grau de monopólio do mercado. Portanto, o maior potencial de aumento se dará em cenários que privilegiem o repasse ao preço final do produto, ou seja, quando o hiato do emprego for menor e quando o grau de monopólio do mercado for maior.
Apresentados o conceito de inflação, as principais causas do processo inflacionário e a caracterização dos tipos de inflação, na próxima subseção será apresentada a forma de quantificar o aumento de nível de preços no Brasil, que se traduz na forma dos indicadores, ou índices de inflação.
Após a compreensão do fenômeno inflacionário, é necessário quantificar a elevação dos preços em um determinado período de tempo. Para essa função, são utilizados os índices de preços, que podem ser entendidos como “números que agregam e representam os preços de determinada cesta de produtos. Sua variação mede, portanto, a variação média dos preços dos produtos dessa cesta.” (BCB, 2016). No Brasil, existem diversos índices de preços que podem traduzir informações de preços ao consumidor, preços ao produtor, custos de produção, custos de construção, entre outros. Nas subseções seguintes, apresentam-se dois importantes índices de preços ao consumidor utilizados no Brasil, o IPCA e o IPC.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (2023), o IPCA é o indicador oficial econômico brasileiro no âmbito da inflação. Seu comportamento possui suma importância para a determinação da Taxa Selic, a taxa básica de juros da economia brasileira. Elaborado pelo IBGE, possui recorrência mensal. Por objetivo, busca auferir a variação dos preços de um conjunto de produtos e serviços que são comercializados no varejo e que se traduzem no consumo pessoal das famílias. Para tanto, são coletadas informações em estabelecimentos comerciais, prestadores de serviços, concessionárias de bens públicos, entre outros. O período de coleta é compreendido entre os dias 01 a 30 do mês de referência, nas áreas urbanas das regiões metropolitanas de: Belém, Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Vitória, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, além do Distrito Federal e dos municípios de Goiânia, Campo Grande, Rio Branco, São Luís e Aracaju.
O índice traduz a variação média de preços de uma cesta de consumo categorizada, que abrange famílias com rendimentos entre 01 (um) e 40 (quarenta) salários-mínimos, independente da fonte de recursos. A determinação desta faixa de renda visa compreender uma cobertura de 90% das famílias pertencentes às áreas urbanas que estão sob a tutela do SNIPC (Sistema Nacional de Índices de Preços ao Consumidor). O SNIPC pode ser compreendido como uma combinação de processos que se destinam a produzir índices de preço ao consumidor. Além do principal indicador, o IPCA, o sistema é responsável pela elaboração de outro importante índice, o INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor), cuja abrangência destina- se a famílias residentes em áreas urbanas e que possuem rendimentos de 01 (um) a 5 (cinco) salários-mínimos. (IBGE, 2023).
Para o IBGE (2023) a determinação das cestas de consumo e o peso que cada categoria terá na composição do índice geral, são baseadas na POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares), que também possui elaboração pelo instituto. Essa pesquisa avalia as estruturas de consumo, gasto e rendimento das famílias, ao passo que oferece um perfil das condições de vida da população, com base na análise do orçamento doméstico. Outras características como a percepção subjetiva da qualidade de vida e estudos sobre o perfil nutricional da população também são abarcadas pela pesquisa, porém, a sua principal contribuição é estimar as estruturas de ponderação que permitem calcular os índices agregados de inflação. Essas informações se traduzem nas cestas de consumo categorizadas em despesas como: alimentação, habitação, transportes, entre outras.
Cabe destacar que a pesquisa mais recente divulgada pelo IBGE é a POF 2017-2018, cujo resultado atualizou as estruturas de ponderação utilizadas no cálculo dos indicadores inflacionários, que datam a partir do mês de referência de janeiro de 2020. As estatísticas anteriores estavam balizadas na POF 2008-2009, refletindo nos resultados até o período de dezembro de 2019. Em virtude disso, serão utilizados no decorrer deste trabalho estatísticas posteriores à modificação da POF. Essa escolha possui caráter metodológico e preza pela qualidade, refletindo maior alinhamento ao perfil estrutural orçamentário da população brasileira. Entretanto, sem perda de conteúdo para o que se propõe a análise, tendo em vista que os reflexos da pandemia resultaram numa maior aceleração da inflação no período de 2021, como se analisará nas seções subsequentes.
A Tabela1 apresenta a atualização das estruturas de ponderação, em relação ao cálculo do indicador IPCA, com base na POF 2017-2018:
Pode-se notar que a categoria de “Alimentação e bebidas” foi a que mais sofreu redução no peso de ponderação em relação à POF anterior (-5,59 p.p.). Entretanto, as categorias de “Transportes”, “Comunicação” e “Saúde e cuidados pessoais” avançaram, respectivamente (2,56 p.p.), (2,54 p.p.) e (1,42 p.p.), denotando um novo perfil de consumo da população brasileira no período mais recente.
Na sequência, apresenta-se outro indicador inflacionário que será utilizado para compor a análise deste trabalho.
O IPC é outro indicador inflacionário brasileiro relevante, que têm a sua elaboração sob a tutela do IBRE-FGV (Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas). Semelhante ao IPCA, a estrutura de consumo das famílias utilizada para o cálculo do indicador tem como base a POF, sendo que revela a importância monetária dos bens e serviços que compõem as amostras. O indicador tem como objetivo abarcar famílias que possuem a renda situada entre 1 (um) e 33 (trinta e três) salários-mínimos mensais. A abrangência geográfica se concentra nas capitais: Belo Horizonte, Brasília, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador. (FGV, 2023).
A Tabela 2 apresenta as estruturas de ponderação, em relação ao IPC, com base na POF 2017-2018:
Pode-se perceber um recuo nas categorias de “Alimentação”, “Habitação” e “Vestuário”, respectivamente em (-3,95 p.p.), (-2,62 p.p.) e (-1,2 p.p.). Em contrapartida, podemos visualizar o avanço no peso das categorias “Saúde e cuidados pessoais”, “Despesas diversas” e “Educação”, em (3,72 p.p.), (2,67 p.p.) e (1,61 p.p.), respectivamente. Em comparação com o IPCA, apesar de referenciarem-se ambas na POF, a diferença nas estruturas de ponderação se dá em função das faixas de rendas compreendidas em cada metodologia. Enquanto o IPCA abrange as faixas de 1 (um) a 40 (quarenta) salários-mínimos, o IPC restringe-se entre 1 (um) e 33 (trinta e três) salários-mínimos mensais. Entretanto, ambos os índices possuem ampla abrangência em relação as faixas de renda observadas. Segundo Sampaio e Weiss (2021), indicadores amplos mostram-se pobres para traduzir as percepções de inflação, pois não refletem a realidade das classes sociais mais afetadas.
Para uma percepção mais ampla dos impactos inflacionários nos diferentes perfis de renda serão utilizados os dados do IPC por decis de renda, que se dividem em 10 (dez) faixas de renda diferentes. Dessa maneira, entende-se que os resultados refletem de maneira mais completa a percepção de inflação pelos diferentes grupos sociais, haja vista que cada decil de renda possui estruturas de ponderação diferentes, consequentemente, resultam em índices inflacionários distintos. Na Tabela 3 são apresentados os intervalos de renda em salários-mínimos, compreendidos em cada decil de renda considerado no cálculo do IPC-decis.
Ao se confrontar os indicadores entre os perfis de renda, pode-se estabelecer uma relação hierárquica, de forma que se pode estabelecer qual a faixa de renda mais afetada pela inflação, e, ao se debruçar sobre ela, observar detalhadamente qual grupo de ponderação teve maior peso contribuinte para a elevação do índice.
Tendo em vista que foram apresentados os índices que compõem a análise deste trabalho, na próxima subseção serão apresentados os instrumentos que o Estado dispõe para a contenção do processo inflacionário.
Os regimes de administração monetária são instrumentos que visam a estabilização da moeda. Existem diversos modelos de estabilização, com ancoragens diferentes. Conforme ressalta Campedelli (2017), a maioria das economias mundiais de viés ortodoxo adotam o regime de metas de inflação como modelo de estabilização monetária. Como pioneira, em 1990, pode-se destacar a Nova Zelândia, seguida por países como Canadá, Espanha, Reino Unido e Chile. No caso brasileiro, a adoção inicia-se em 1999, em substituição da ancoragem cambial, modelo que permaneceu entre 1994 e 1998.
Além do tradicional Regime de Metas de Inflação (RMI), será apresentada a proposta pós-keynesiana de administração monetária. Os pós-keynesianos, partem da premissa de que a simples elevação da taxa de juros afeta os sintomas da inflação e não as suas respectivas causas. Para essa corrente de pensamento, existem diversos tipos de inflação, devendo ser utilizado um arcabouço antinflacionário diferente para cada situação, no intuito de suprimir as causas inflacionárias. (SICSÚ, 2003).
Segundo o BCB (2023), um dos principais instrumentos para a contenção da inflação que o Estado brasileiro dispõe é representado pelo Regime de Metas de Inflação (RMI), que está em vigor desde 1999. O CMN (Conselho Monetário Nacional) - órgão superior do SFN (Sistema Financeiro Nacional) - representado pelo Ministro da Economia, pelo Presidente do Banco Central e pelo Secretário Especial de Fazenda do Ministério da Economia, possuem a responsabilidade da formulação da política monetária. Para tanto, definem publicamente uma meta pré-estabelecida de inflação anual que deve ser perseguida pela Autoridade Monetária, representada pela figura do BCB. Uma vez centralizada a meta, há a previsão de uma variação de tolerância que atualmente situa-se num intervalo de 1,5 ponto percentual (p.p.), tanto para cima, quanto para baixo da meta.
O principal objetivo do RMI é a manutenção da inflação em patamares baixos, oferecendo previsibilidade à economia e ancorando as expectativas dos agentes econômicos em relação à inflação futura. Para que isso seja possível, devem-se observar: a publicidade e conhecimento prévio da sociedade em relação à meta; a autonomia do Banco Central para que sejam adotadas medidas para o cumprimento da meta; além do estabelecimento de uma comunicação transparente e regular sobre as decisões tomadas a respeito da política monetária, os objetivos e justificativas relacionadas à sua adoção e, consequentemente, mecanismos de responsabilização caso a autoridade monetária não cumpra a meta estabelecida. Essas prerrogativas garantem a solidez do regime e a busca permanente do seu cumprimento. (BCB, 2023).
Para o alcance desse propósito, o BCB (2023) afirma que, instrumentalmente falando, a figura do BCB passa a controlar a taxa de juros de curto prazo. Essa condução se inicia pela definição da meta da Selic, em reunião do COPOM (Comitê de Política Monetária) do BCB. Atualmente, o COPOM reúne-se a cada 45 (quarenta e cinco) dias, para emitir um parecer sobre a condução da política monetária, tendo como principal objetivo as diretrizes estabelecidas pelo RMI. Para justificar seus movimentos, o comitê disponibiliza uma ata de suas reuniões, em que detalha a conjuntura econômica, analisa possíveis cenários de riscos, discute a condução da política monetária e comunica a sua decisão sobre a manutenção da taxa Selic, ou a alteração da mesma.
De fato, essa taxa refere-se aos juros apurados nas operações de empréstimos de um dia entre as instituições financeiras que possuem títulos públicos federais como garantia. Portanto, o BCB opera efetivamente no mercado de títulos públicos, o mercado SELIC (Sistema Especial de Liquidação e Custódia), para garantir o estabelecimento e convergência da taxa à meta estabelecida previamente, segundo ressalta o BCB (2023). Portanto, ao definir a taxa pela qual os bancos são remunerados pelos títulos públicos, o BCB controla a taxa de juros básica da economia que irá balizar a concessão de empréstimos, financiamento, a remuneração da poupança e dos CDBs (Certificados de Depósitos Bancários).
Definitivamente, o controle da taxa Selic se mostra um instrumento muito poderoso que desencadeia efeitos em toda economia. Entretanto, cabe ressaltar que os efeitos de alteração na taxa de juros não são imediatos, há um hiato entre a sua implementação e os resultados da política monetária, que podem variar de seis a nove meses, segundo os modelos econômicos implementados. Quando o BCB altera os juros, em última instância, ele deseja modificar o comportamento dos agentes econômicos. Ou seja, existem diferentes formas pelas quais a modificação da taxa de juros afeta os preços da economia e, consequentemente, as decisões dos agentes. Pode-se denominar tais instrumentos de canais de transmissão da política monetária, sendo eles: (i) decisões entre consumo e investimento, (ii) taxa de câmbio, (iii) preço de ativos, (iv) crédito e (v) expectativas. (BCB, 2023).
Segundo o BCB (2023), o primeiro dos canais, que se refere às decisões entre o consumo e investimento, decorre diretamente da alteração da taxa de juros. Nos casos em que a taxa básica de juros se eleva, as taxas de juros reais tendem a subir. Esse movimento favorece a remuneração de investimentos a prazo em detrimento do consumo imediato, arrefecendo os preços de bens e serviços e contribuindo para o controle inflacionário. Já a dinâmica da transmissão relacionada à taxa de câmbio aplica-se somente em economias abertas. Nessa seara, uma elevação de juros tende a valorizar a moeda doméstica frente à moeda estrangeira. Dessa forma, é possível adquirir mais unidades monetárias estrangeiras com a mesma quantidade de moeda doméstica. Em outras palavras, os bens de consumo e insumos importados diminuem de preço. Pela ótica da demanda, há um incentivo ao consumo de bens importados em detrimento de bens nacionais, reduzindo a demanda agregada e diminuindo as pressões sobre o nível de preços.
Outro canal de transmissão que o BCB (2023) destaca, é a percepção de riqueza dos agentes. Alterações de subida de taxas de juros diminuem o nível de atividade econômica das empresas e seus respectivos lucros. Portanto, o preço das ações dessas empresas tende a ser afetado para baixo. Tendo em vista que o portifólio dos agentes é formado por investimentos, a percepção de riqueza das famílias é alterada, podendo interferir negativamente em seus planos de investimento e consumo imediatos. Outra importante variável que é afetada pelo aumento dos juros é o crédito, que fica mais caro para ser adquirido, inviabilizando projetos de investimentos de empresas e decisões de consumo das famílias.
Por último, o canal das expectativas também é muito relevante para o controle inflacionário. Ao elevar a taxa de juros o BCB sinaliza aos agentes econômicos que está comprometido em diminuir as pressões inflacionárias, nem que isso custe um nível de atividade econômica mais contida no presente e no futuro. De fato, os agentes acreditam que a inflação futura será mais baixa e os preços no presente tendem a aumentar em menores patamares, pois as condições recessivas econômicas não darão suporte para maiores reajustes de preço. Dessa maneira, possíveis choques de custo tendem a se propagar de maneira mais comedida na economia, reduzindo efeitos na inflação. Nesse sentido, é fundamental que o BCB goze de plena credibilidade entre os agentes, caso contrário, a condução da política pode gerar crises de desconfiança e amplificar os quadros inflacionários.
Após a apresentação do funcionamento do RMI, apresenta-se uma proposta alternativa ao arcabouço tradicional, baseada na linha teórica Keynesiana e Pós- keynesiana, para o controle da inflação.
Segundo Sicsú (2003), a proposta convencional de controle inflacionário dispõe de instrumentos de política monetária, principalmente a taxa de juros, para a contenção da inflação. Nessa abordagem teórica, toda inflação tem como causa as pressões advindas do lado da economia que corresponde à demanda. Portanto, diante de qualquer aceleração nos níveis de preços, eleva-se a taxa de juros, no intuito de frear a atividade econômica e reduzir as pressões de demanda sobre os preços. Não se pode negar a efetividade de tal prática. De fato, elevações na taxa de juros básica da economia acabam por reduzir os níveis de investimento privado, por conseguinte, apaziguando as pressões advindas da demanda. Com a redução de investimentos, aumenta-se o hiato do emprego, tornando mais difícil o aumento de salários. Com o advento dessa prática, a estabilidade da moeda tem sua consolidação. Contudo, com um alto efeito colateral, o permanente estado de aquecimento e resfriamento da atividade econômica, além da elevada taxa de desemprego média. Portanto, a proposta atual de combate à inflação no Brasil – o RMI – se mostra defasado, não atinge estabilização monetária eficiente e não propicia um cenário favorável ao desenvolvimento econômico.
Em contrapartida, a alternativa pós-keynesiana de controle inflacionário não está balizada na contenção de demanda agregada através da elevação da taxa de juros, que causa a redução da atividade econômica, mas sim, conforme ressalta Sicsú (2003), na proposta de uma agenda positiva que atinja as reais causas da inflação, que estão localizadas na oferta. Qualquer inflação que aconteça na economia que não esteja operando em pleno emprego, reflete inconsistências no lado da oferta, e não unicamente da demanda. Ou seja, elevar as taxas de juros é um ato falho, ao passo que ataca os sintomas da inflação (aumento generalizado nos níveis de preços), mas não as suas causas (elevações de custos). O método pós-keynesiano, propriamente dito, passa pela identificação das causas da inflação, buscando verificar o foco originário, a fim de estabelecer uma agenda positiva para o controle, com o arranjo de políticas delineadas que possam conter as pressões de custos, sem prejudicar outros segmentos econômicos, promovendo a estabilidade de preços. Portanto, para cada tipo de inflação deve ser utilizado um instrumento anti-inflacionário correspondente, sufocando as pressões nos preços antes que elas possam desencadear seus efeitos por toda a economia.
Para os cenários em que se perceba pressões de inflação relacionadas a salários e lucros, pode-se utilizar a contribuição dos autores Weintraub e Wallich (1978), os quais desenvolveram uma política anti-inflacionária denominada TIP (ou tax-based on incomes policy). Sua origem deriva da premissa que os ganhos salariais e de lucros acima dos ganhos de produtividade são prejudiciais para a sociedade como um todo. As empresas que concedem esse tipo de aumento, estão impondo um custo social tal como a poluição do meio ambiente, como uma externalidade negativa na economia. De fato, a TIP deve tributar as empresas que realizam aumentos de preços em seus produtos, com o intuito de alargar suas margens de lucro ou cobrir custos de aumentos salariais. Ao contrário da política de elevação de juros, que impõe um custo em todas as empresas (inclusive aquelas que não realizaram aumentos de preços), a TIP trabalha na dinâmica de produzir desincentivos à escalada de preço na economia.
Em relação aos quadros inflacionários que se identifique como causa os rendimentos decrescentes, não há muito o que se fazer em se tratando de políticas de curto prazo, sendo este um custo que a sociedade necessita arcar em conjunto. (SICSÚ, 2003). Efetivamente, os países necessitam de um programa permanente de qualificação profissional dos trabalhadores, com foco no desenvolvimento tecnológico, para que a mão-de-obra esteja apta para ocupar os postos de trabalho. Observa-se que nesse quesito a política extrapola a esfera fiscal e monetária e passa a trabalhar o problema educacional, também como instrumento para estabilização da moeda, com visão no longo prazo.
Conforme ressalta Sicsú (2003), a inflação de impostos, cuja origem se dá no aumento de carga tributária por parte do agente público, deve ser evitada pelo próprio governo. A abordagem pós-keynesiana se mostra contrária a divisão do governo em instituições independentes, ao passo que não considera antagônicos os papéis de promoção de estabilidade monetária (prerrogativa do BC) e a manutenção de um orçamento equilibrado (competência governamental). Ambas as figuras institucionais devem estar comprometidas com a estabilidade da moeda, além de agir de forma conjunta e estruturada para alcançar tal propósito. Ou seja, os governos deveriam reduzir a carga tributária, na medida do possível, nos setores que tiveram seus custos elevados (por choques de oferta, por exemplo), a fim de evitar o aumento dos preços. Ou seja, uma política fiscal efetiva que visa a manutenção da estabilidade dos preços.
No que concerne à inflação importada, em horizonte de curto prazo, essa pode ser compelida com a presença de políticas cambiais mais atuantes, conjuntamente com políticas monetárias e fiscais bem elaboradas e pontuais. Em horizontes de longo prazo, a presença de políticas industriais de incentivo às exportações, e a substituição de importações, se mostra mais efetiva. Ao passo que, com a presença de uma pauta exportadora mais robusta, há entrada de reservas internacionais, que auxiliam na manutenção de um câmbio mais favorável. Já na substituição de importações, visto que os produtos passam a compor a cesta doméstica, são reduzidas as pressões advindas de uma possível alta de preços internacionais. A elevação da taxa de juros doméstica pode ter capacidade de atrair reservas internacionais e reduzir a taxa de câmbio, além de diminuir a demanda por produtos importados. Contudo, acaba por resfriar a demanda interna, como efeito colateral já ressaltado pelas políticas antinflacionárias convencionais. (SICSÚ, 2003).
Segundo Sicsú (2003), para prevenir os choques de inflação spot, ou de commodity, que são ocasionados pela repentina redução de oferta, oriundos de uma quebra de safra, por exemplo, são necessárias instituições governamentais que atuem no estoque de manutenção de safras agrícolas, como a CONAB no Brasil (Companhia Nacional de Abastecimento). De fato, essas instituições possuem caráter protetivo, reduzindo variações de preços provenientes de uma baixa de oferta no mercado, ou uma alta demanda de determinado produto específico. Além do que, ao garantir a estabilização de preço das commodities agrícolas, estimulam o investimento no campo, aumentando a produtividade e renda do agronegócio.
Outro fator que contribui para altos patamares inflacionários são os preços administrados por contratos, ou regulados pelo governo. Como Sicsú (2003) afirma, os reajustes automáticos oriundos das regras contratuais de indexação garantem a manutenção das receitas, não necessariamente alinhadas com a variação dos custos. Podemos citar como exemplo, contratos de cooperação pública e privada (nas áreas de transporte, saneamento, distribuição de energia elétrica, entre outros), na esfera privada, contratos de aluguéis, planos de saúde, telefonia. Os arranjos contratuais que preveem indexação devem ser evitados, pois estimulam a aceleração inflacionária, tendo em vista que os preços futuros serão resultado das variações inflacionárias presentes.
Em relação à inflação de demanda, o cenário no qual ela se apresenta está intimamente ligado ao pleno emprego, ou seja, quando a economia se encontra no estado de amplo emprego dos fatores de capital e de trabalho, superaquecida. Para o combate desse tipo de inflação, precisam ser acionados gatilhos de políticas macroeconômicas contracionistas, com a finalidade de gerar um resfriamento na atividade econômica e reduzir as pressões advindas da demanda. Para tanto, se faz efetiva a redução dos gastos do governo, podendo estar acompanhada do receituário convencional de elevação de taxa de juros, para manter a estabilidade monetária. (SICSÚ, 2003).
Para que haja sucesso na implementação e efetividade das políticas antinflacionarias pós-keynesianas, se faz necessário o compromisso de toda estrutura da sociedade, em consonância com o objetivo de estabilização monetária. A inflação impõe um custo social a todos, e deve ser vista com seriedade. Por conta disso, é desejável e necessária a união dos agentes econômicos na construção de um ambiente cooperativo e consensual, que possa mediar as relações entre o governo, o Banco Central, os trabalhadores e os empresários, conforme afirma Sicsú (2003). A teoria convencional delega o trabalho de controle inflacionário apenas ao Banco Central, oferecendo como único instrumento a política monetária. Caso os preços acelerem, elevam-se as taxas de juros. Trata-se de um receituário muito simplificado para um problema tão complexo. A proposta pós-keynesiana é muito mais rica, no sentido em que conta com instrumentos de política monetária, fiscal, cambial, industrial, além da envolver diversos agentes econômicos distintos na responsabilização da estabilidade monetária.
Isto posto, finalizam-se as questões de abordagem teórica e no próximo capítulo inicia-se a análise do processo inflacionário brasileiro, em relação ao período da pandemia de COVID-19, sobretudo no que se refere a faixa mais pobre da população.
Segundo Sampaio e Weiss (2021), a pandemia de COVID-19 configurou um choque negativo e simultâneo de oferta e demanda, com fortes impactos inflacionários acompanhados de efeitos econômicos não-triviais. Se, por um lado, as restrições de mobilidade e proibição de atividades dificultaram o consumo e a retomada de crescimento, causando pressões baixistas na inflação, por outro lado, o desarranjo de cadeias produtivas e necessidades de insumos de saúde, causaram pressões de alta.
Nesta seção, analisam-se os dados respectivos ao índice amplo (IPCA), que demonstra o comportamento geral da inflação no período. Em seguida, a decomposição do índice IPC em decis de renda, que revela os impactos inflacionários por faixa de renda da população. Por fim, verifica-se o comportamento do salário- mínimo no período, no que concerne aos seus respectivos reajustes e o impacto no poder de compra dos agentes que contam com rendimentos fixos.
Para quantificar o processo inflacionário brasileiro no período da pandemia de COVID-19, recorre-se ao índice oficial de inflação, medido pelo IPCA. Os dados do ano de 2019 referem-se ao período pré-pandêmico, para termos de comparação em relação aos anos posteriores ao choque, tendo em vista que as medidas de restrição de mobilidade e distanciamento social foram implementadas em meados de março de 2020. A Tabela 4 evidencia os dados de inflação anual acumulada nos anos de 2019 a 2022.
Uma tradução míope dos dados do IPCA nos sugere que a pandemia não provocou impactos na inflação no ano de 2020, tendo em vista que os patamares se mostram muito semelhantes ao ano de 2019. De acordo com Sampaio e Weiss (2021), a análise da inflação “cheia” mostra-se um indicador pobre, sobretudo por mascarar uma forte alta em grupos que podem afetar as classes mais baixas. No caso de 2020, destaca-se o setor de alimentos, com maior influência no índice, sendo responsável por 2,73 pontos percentuais do total de 4,52% do IPCA.
Na visão do BCB (2021), conforme ressalta o Relatório de Inflação referente à 2020, após os efeitos baixistas iniciais, no segundo semestre do ano houve acentuada aceleração nos preços. As causas apontadas incluem a depreciação da moeda doméstica, a alta dos preços das commodities, o aumento do preço dos combustíveis e derivados de petróleo e a expressiva recuperação da demanda. Os fatores que corroboraram para o aquecimento da demanda decorrem do auxílio emergencial disponibilizado pelo Governo Federal e pelas restrições de oferta interna de alguns produtos. Os efeitos inflacionários foram caracterizados como temporários, porém com indícios de persistência além das projeções anteriores realizadas.
No que se refere ao ano de 2021, segundo o Relatório de Inflação do BCB (2021, 2022), a inflação do período foi fortemente afetada pelo aumento significativo dos preços das commodities, trazendo impactos agravados ao cenário doméstico por conta da desvalorização cambial. Houve forte alta nos preços dos produtos derivados de petróleo e biocombustíveis, impactando no preço dos transportes. Na contribuição inflacionária causada por fatores internos, pode-se destacar a crise hídrica, cujo impacto provocou aumentos nas tarifas de energia elétrica, provenientes das bandeiras tarifárias de “escassez hídrica”. Também são ressaltados os desequilíbrios entre demanda e oferta de insumos e gargalos nas cadeias produtivas globais, decorrentes dos impactos da pandemia em nível mundial. A Tabela 5 decompõe as elevações do IPCA em 2021 em seus principais componentes, entre preços livres e administrados.
De fato, a inflação do ano de 2021 foi a mais pronunciada e preocupante, atingindo fortemente os preços, além das expectativas do mercado e dos formadores de política monetária, ficando inclusive acima do limite superior do intervalo de tolerância da meta do ano, estabelecida em 5,25% (3,75% da meta e 1,5% de intervalo de tolerância). Em virtude desse comportamento, em atendimento ao decreto 3.088/2019 que estabelece o RMI, o Presidente do BCB divulgou publicamente as razões do descumprimento do alcance da meta de inflação, por meio de carta aberta ao Ministro de Estado da Fazenda, em 11 de janeiro de 2022. Esse documento detalha as causas do descumprimento, estabelece as providências e o prazo para assegurar o retorno da inflação à meta. Destaca-se que em março de 2021 o BCB inicia um ciclo de aperto monetário que se entende por todo ano, consolidando um cenário contracionista de política monetária, o qual será tratado mais detalhadamente no capítulo posterior.
No que se refere ao ano de 2022, houve arrefecimento da inflação medida pelo IPCA em relação ao ano anterior, entretanto, ainda superior ao limite estabelecido pelo RMI. De acordo com a carta aberta do BCB (2023), os fatores que contribuíram para a manutenção de altos patamares atribuem-se: ao fator inercial inflacionário relativo ao ano anterior; elevação dos preços de commodities, com destaque para o petróleo; aos desequilíbrios entre oferta e demanda de insumos e gargalos nas cadeias produtivas globais; aos choques positivos de preços de alimentação, relativos à questões climáticas; ao aquecimento na demanda de serviços e no aumento do emprego, impulsionados pela queda da quantidade de casos de COVID-19 e aumento da mobilidade. Entretanto, os patamares inflacionários poderiam ser maiores, caso não fossem as pressões baixistas relacionadas com: a redução na tributação dos combustíveis, energia elétrica e comunicações; o comportamento da bandeira de energia elétrica, saindo da escassez hídrica para a bandeira verde; a apreciação da taxa de câmbio e o hiato do produto em campo negativo. Ressaltam-se ainda os efeitos da política monetária contracionista como determinante no processo de arrefecimento inflacionário. Na Tabela 6, pode-se visualizar a decomposição do IPCA em seus principais componentes, entre preços livres e administrados, para o ano de 2022.
Após apresentação dos dados relativos ao principal índice de inflação, pode- se compreender a evolução geral dos preços no país, muito embora representem cestas de consumo muito abrangentes, conforme destaca Junior et al. (2022). Para compreender como a inflação afeta orçamentos de distintos padrões de renda familiar é necessária outra forma de organização dos dados, para tal análise recorre-se à abertura do índice por decis de renda, o qual será retratado na próxima seção.
Segundo Junior et al. (2022), a abertura por decis de renda familiar possibilita a identificação da parcela da sociedade que está sendo mais afetada pelo processo inflacionário, demonstrando o fato de que nem sempre a inflação atinge todas as famílias com a mesma intensidade. Na Tabela 7 pode-se verificar como as famílias de diferentes níveis de renda perceberam a inflação nos anos de 2020 à 2022.
Conforme afirmam Sampaio e Weiss (2021), o período inicial da pandemia até o fim de 2020 foi excepcional no que se refere aos impactos inflacionários sobre os diferentes grupos da população. Essas diferenças são basicamente definidas pelo peso dos produtos e serviços na cesta de consumo de cada faixa de renda (MONTEIRO, 2022).
De acordo com Monteiro (2022) a decomposição do IPC por decis de renda comprova o diagnóstico de que em 2020 a pressão de preços provocada pelo choque sanitário atingiu mais severamente as famílias mais pobres. Isso se deve ao fato de que os alimentos têm maior peso na composição da cesta de consumo de segmentos de menor renda (SAMPAIO, WEISS, 2021).
Ao comparar a inflação de 2020 para o primeiro decil de renda (que compreende o intervalo de 1 a 1,5 salários-mínimos) em relação ao décimo decil de renda (que compreende o intervalo de 11,6 a 33 salários-mínimos) pode-se perceber um patamar inflacionário com mais de 60% de diferença entre as faixas de renda. De acordo com Sampaio e Weiss (2021), historicamente, a inflação de segmentos de menor renda são maiores, entretanto essa discrepância nunca foi tão alta e duradoura quanto pode-se notar em 2020.
Em relação aos períodos de 2021 e 2022, pode-se perceber que a inflação se diluiu de maneira mais homogênea nas diferentes faixas de renda. Entretanto, conforme ressalta Monteiro (2022) isso não elimina a gravidade da inflação para as camadas de menor renda, pois as restrições financeiras se mostram mais proibitivas ao aumento dos custos básicos das famílias.
Apresentados os dados relativos à inflação e o seu respectivo impacto nas diversas faixas de renda, na próxima seção será abordado o comportamento do salário-mínimo no período.
O salário-mínimo brasileiro teve início de regulamentação na década de 1930, sendo instituído de maneira permanente em 1940. Sua promulgação visou a garantia de um valor mínimo necessário para a sobrevivência, baseado no custo de vida da população, sendo reajustado no decorrer dos anos afim de recompor o poder de compra corroído pela inflação (COLELLA et al., 2015).
Conforme ressalta Barbosa (1997), o economista Mário Henrique Simonsen debruçou-se em seu primeiro livro sobre a inflação brasileira, sobretudo na descrição das oscilações das rendas reais dos assalariados. De fato, os salários nominais sofrem reajustes descontinuados ao passo que os preços sobem continuamente. Isso resulta em oscilações no nível de poder aquisitivo. Logo após o movimento de reajuste, salários reais atingem o nível de pico, com a aceleração da inflação o poder aquisitivo vai declinando progressivamente até um novo reajuste. O Gráfico 1 representa o gráfico do salário real, denominada por Barbosa como Curva de Simonsen.
De fato, ao analisar os dados de reajuste do salário-mínimo de 2019 a 2023, conforme observa-se na Tabela 8, não há demonstrações de ganhos reais de renda, os reajustes salariais apenas atuaram como instrumento de recomposição inflacionária do período.
Pode-se afirmar que no período da pandemia de COVID-19, a classe assalariada mais pobre foi penalizada pela queda do poder aquisitivo real, proveniente da política de reajuste do salário-mínimo, conforme dinâmica ressaltada por Simonsen.
Ao comparar-se a inflação por decis de renda, pode-se notar que as faixas de maior remuneração sofreram um menor impacto inflacionário em relação ao primeiro decil. Acrescenta-se o fato de que os estratos sociais mais elevados não possuem rendimentos atrelados ao salário-mínimo. Portanto, pode-se concluir que os mais pobres foram penalizados duplamente, em decorrência do maior nível inflacionário e da maior queda do poder aquisitivo real.
Isto posto, na seção posterior dedica-se espaço à análise do cumprimento do RMI e a condução da política monetária, sobretudo no período de 2020 a 2022.
Esta seção dedica-se a observar os movimentos de condução da política monetária no período de 2020 a 2022, sobretudo no que se refere ao cumprimento do RMI e as decisões efetuadas pelo COPOM em relação a taxa SELIC. Por fim, sinalizam-se algumas críticas ao regime, como único arcabouço de contenção inflacionária, apresentando instrumentos que poderiam ter sido utilizados para arrefecer a inflação do período, sobretudo ao se considerar a análise do impacto da inflação sobre os diferentes níveis de renda no Brasil.
No que se refere ao efetivo cumprimento do RMI, o BCB obteve êxito nos anos de 2019 e 2020, sendo que nos anos de 2021 e 2022 a inflação anual medida pelo IPCA se mostrou superior ao limite máximo estabelecido. A Tabela 9 estabelece as condições para o RMI e respectivo comportamento inflacionário no período de 2019 a 2022.
Devido ao fato do não cumprimento da meta estabelecida nos anos de 2021 e 2022, em atendimento aos critérios basilares do regime, o presidente do BCB divulgou publicamente as razões do descumprimento em carta aberta destinada ao Ministro do Estado da Fazenda, em ambas as ocasiões. O documento trás um apanhado de motivações para tal divergência, além de estabelecer providências para o controle inflacionário e a convergência da inflação para a meta.
No que se refere às decisões de condução da política monetária pelo COPOM, a Tabela 10 apresenta um resumo das reuniões do conselho em relação à definição da Taxa Selic Meta, no período de 2019 a 2022.
Com a finalidade de compilar as informações relativas ao RMI, contemplar o movimento da taxa Selic e a inflação medida pelo IPCA acumulada em 12 meses, apresenta-se o Gráfico 2. Pode-se perceber que o início da aceleração inflacionária acumulada se deu em meados de junho de 2020, iniciando um ciclo de alta que atinge o limite superior da meta inflacionária em fevereiro de 2021, com seu apogeu em abril de 2022, no patamar de 12,13%. Entretanto, o ciclo de subida de juros se inicia em março de 2021, consolidando um cenário de política monetária contracionista, com 12 aumentos consecutivos na taxa Selic Meta. A taxa básica de juros da economia saltou de 2% em março de 2021 para 13,75% em agosto de 2022, uma alta de 11,75 pontos percentuais num intervalo de 17 meses. A inflação acumulada começou seu ciclo de queda em julho de 2022 e segue arrefecida até o final do ano. Entretanto, mesmo com uma diferença de 8 pontos percentuais entre o IPCA acumulado e a taxa SELIC o BCB sequer sinaliza movimentos de queda na taxa de juros no período.
Desta forma, encerra-se a análise proposta na seção e encaminha-se para as críticas ao desenho institucional vigente, no que diz respeito ao arcabouço de instrumentos para contenção do processo inflacionário.
Conforme Sampaio e Weiss (2021) diagnosticaram, o desmonte estatal em diferentes esferas limitou o raio de ação governamental no combate à inflação, na medida em que contou apenas com instrumental do RMI. Ao atuar somente via taxa de juros o BCB usa uma dose excessiva de um remédio pouco eficaz e que compromete o crescimento econômico. Portanto, a solução depende da ampliação da atuação estatal, de forma coordenada ao BCB.
De acordo com Sampaio e Weiss (2021), no que se refere à questão alimentar, uma opção seria a utilização de estoques reguladores para estabilização de preços. Na questão dos combustíveis, seria necessário abandonar a política de preços da Petrobrás, vigente no período, em que se baseava nos preços praticados internacionalmente para formar o preço brasileiro, e desenhar uma nova política, que mantenha a saúde financeira e a capacidade de investimento da empresa, além de atender aos interesses governamentais. Sobre a questão energética, a solução partiria da construção de um fundo nos períodos de menor custo para ser utilizado em períodos de elevação de preços. Na questão cambial, o governo poderia ter atuado para reduzir a forte depreciação, com uso mais assertivo de swaps cambiais, instrumentos considerados market-friendly. Os autores ressaltam ainda que tanto no caso dos combustíveis como no da energia, o que se apresenta são políticas que privilegiam o lucro privado em detrimento do uso de estatais como instrumentos de política econômica.
De fato, a proposição dos autores é que o controle da inflação deve lançar mão de políticas de diferentes naturezas, inclusive fiscais, e da coordenação entre diferentes órgãos do governo, atuando também do lado da oferta. De fato, as sugestões alinham-se com o arcabouço antinflacionario pós-keynesiano, conforme abordou-se anteriormente no referencial teórico.
Cabe ressaltar que a teoria de Keynes e os desenvolvimentos pós- keynesianos não recomendam o uso único da taxa de juros como instrumento de controle inflacionário. Muito embora, autores como Paul Davidson e Randall Wray reconheçam que o uso da taxa de juros pode ser eficaz. Todavia, não recomendam sua utilização devido aos impactos que uma elevação da taxa de juros causa sobre o desemprego (SICSÚ, 2003).
De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) (2021), conforme dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), referente a 2020, o desemprego atingiu com maior intensidade aqueles que possuem menor grau de instrução (ensino fundamental incompleto, ensino médio incompleto e ensino médio completo).
Portanto, o RMI ao utilizar altas taxas de juros para o controle inflacionário, além de penalizar o nível de atividade econômica, pode causar aceleração do desemprego, que, em última instância, afeta com maior veemência a população mais pobre, cujo nível de escolaridade tende a ser precário.
A temática da inflação brasileira é um objeto de estudo de grande importância no campo da economia, principalmente no que se refere à estabilidade da moeda. Entre os anos de 1986 e 1994 houve seis planos de estabilização monetária diferentes, todos fracassaram. Somente após a implementação do Plano Real, em julho de 1994, que o brasileiro começou a conviver com menores patamares inflacionários. São em momentos de crise, como a que ocorreu em 2020, que a economia demostra suas fragilidades e penaliza, sobretudo, os mais vulneráveis. Dentro deste cenário, reforça-se a importância do estudo de como a população brasileira mais pobre foi afetada pela inflação no período da pandemia do coronavírus.
As informações e dados apresentados neste trabalho contribuem de maneira significativa no campo de estudo inflacionário brasileiro, pois evidenciam a fragilidade dos índices amplos na percepção da inflação no recorte social mais pobre. Ressalta- se a importância da análise de índices inflacionários como o IPC-FGV por decis de renda, possibilitando uma melhor compreensão do processo inflacionário nos diversos estratos sociais. A dinâmica de reajuste do salário-mínimo também pode ser apontada como fator reforçador de desigualdade, na medida em que promove perdas reais de renda, com mais intensidade em cenários de inflação elevada. Por fim, o arcabouço do RMI como único instrumento de controle inflacionário, ao utilizar altas taxas de juros, contribui para a queda do nível de atividade econômica e pode causar maiores taxas de desemprego. Sabendo que o desemprego afeta primordialmente a mão-de- obra menos qualificada e de menor escolaridade, ressalta-se novamente a vulnerabilidade da população mais pobre.
Os conteúdos aqui apresentados demonstram que muitas outras pesquisas ainda podem ser realizadas sobre o impacto inflacionário na população brasileira mais pobre. Isso se deve à importância do tema e inúmeras contribuições para o meio acadêmico, com a finalidade de sugerir a formação de políticas públicas mais robustas, no que se refere aos instrumentos de controle inflacionário, visando maior estabilidade monetária e de renda real para os menos favorecidos.
BARBOSA, F. H. A contribuição acadêmica de Mário Henrique Simonsen. Revista de econometria EPGE/FGV, Rio de Janeiro, Vol. 17, n. 1, p. (115-130), maio, 1997. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/bre/article/view/2872/1785. Acesso em: 23 jun. 2023.
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